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27/05/2020 às 10h33min - Atualizada em 27/05/2020 às 10h33min

A gratidão

LOGOSOFIA
Se existe algo, entre as mil e uma coisas que o homem pode conhecer, que apresente mais variados, interessantes e ricos aspectos em sua configuração integral, esse algo é o próprio ser humano. É tão grande a multiplicidade e a diversidade de suas características e tamanha a amplidão que apresenta ao estudo da inteligência, que bem se poderia afirmar que, mesmo após séculos de estudo, sempre iriam aparecendo nele novas facetas para investigar.

De todos esses aspectos que oferecem tão interessante perspectiva, dado o alcance de seu significado, vamos tomar o que se define como traço ou expressão peculiar do sentimento denominado gratidão.

Quem são os que levam em conta certos fatos vividos, os quais, por serem os mais gratos à vida, deveriam permanecer perenemente frescos em sua memória? Muito poucos; a maioria esquece com demasiada frequência os momentos em que experimenta uma verdadeira felicidade. O instante em que, com a melhor disposição de ânimo, se presta ajuda a um semelhante, como aquele em que, ao contrário, se é ajudado, comovem profundamente o espírito. Nos dois casos assoma a felicidade, e o ato, de verdadeiros caracteres emotivos, predispõe à gratidão: no primeiro caso, por ter sido permitido ajudar; no segundo, por ter recebido ajuda. Isto se compreende naturalmente quando se leva em conta a fragilidade da vida, e que existe, apesar de tudo quanto acreditemos possuir, uma vontade superior à humana que pode permitir ou impedir muito do que o homem se propõe fazer. O certo é que o instante de gratidão se esfuma e é esquecido logo após ocorrer um ou outro dos fatos que citamos.

Muitos, muitíssimos e variados são os casos em que, como consequência desse esquecimento, o homem se priva de desfrutar similares momentos de felicidade, possíveis ainda pela simples revivência mental. Daí que tantos, no afã de se proporcionarem esses momentos de felicidade, busquem sua obtenção por diferentes caminhos, enquanto por negligência ou ignorância deixam de criar o vínculo que lhes permitiria alcançá-los. Esse vínculo não seria outro senão aquele que provém de um fato que, por sua própria natureza, leva a experimentar a realidade de um instante feliz.

É necessário, portanto, mesmo que isso soe paradoxal, criar um sentimento que por inanição parece ter sido eliminado dentre os que o coração humano sustenta: o sentimento de gratidão.

Quando o homem chega a adquirir certo grau de consciência e valoriza a força desta verdade inabalável, que é a que implicitamente surge do que foi dito, sente que sua própria vida se deve, em grande parte, à gratidão. Ela é, traduzida à linguagem impronunciável, uma oferenda íntima e, ao mesmo tempo, a exaltação de uma recordação que mantém vivo, com a própria vida, o instante em que o ser experimenta tão grata felicidade.

Se cada um buscasse dentro de si a recordação das horas felizes e de tudo que foi motivo de ventura, muito seguramente encontraria mais de uma razão para deleitar o espírito nessa revivência de imagens queridas. Para o bem recebido, provenha este de nossos semelhantes, de animais ou de coisas que rodearam ou rodeiam nossa existência, devemos guardar uma consciente gratidão. Com ela conseguiremos destruir a falsa gratidão, aquela que é tão comum e se limita a uma palavra ou uma frase expressada com maior ou menor ênfase. A gratidão consciente não necessita de expressões externas e contribui para fazer ditosa a existência, porque mediante ela se acaricia intimamente a recordação, identificando-a com a vida. Como não guardar gratidão a tudo aquilo que cooperou para tornar mais fácil e feliz o transcorrer dos dias? Deter por um instante, pois, o pensamento naqueles que nos proporcionaram um bem é render-lhes uma justa homenagem, da qual a alma jamais se arrepende, especialmente porque nesses instantes a própria vida parece adquirir outro conteúdo, e o ser, como se uma força titânica, sublime e cheia de ternura o impulsionasse, sente-se disposto a ser mais bondoso e melhor. Por acaso, na circunstância de tributar essa homenagem de gratidão, não se experimenta uma nova ventura, ao sentir que o fato revivido forma parte da própria vida? Totalmente contrário é o que acontece com os que, seguindo outra conduta, desprezam aquele ou aqueles que lhe fizeram um bem, sem perceberem que com isso vão mutilando suas existências, ao truncarem tenros brotos que poderiam mais tarde se transformar em ramalhetes de flores.

A gratidão, como sentimento de imponderável valor, parece ser um dos tantos segredos que o ser humano deve descobrir, para extrair dele esse bem que geralmente se busca ali onde não está e que, encontrado, se desvaloriza e se esquece.

A maioria dos seres humanos crê que a felicidade tem uma forma limitada e que se alcança ou conquista por algum meio sobrenatural que é necessário descobrir; enquanto isso não ocorrer, sua busca haverá de ser uma constante obsessão. Todavia, a felicidade é algo que a vida vai outorgando através de uma infinidade de pequenos instantes. Entretanto, como esses instantes comumente são tidos em pouca conta, por breves ou pequenos, quase passam despercebidos à própria consciência. Se fossem unidos, porém, uns com os outros, revivendo--se os fatos para apreciá-los melhor, ver-se-ia quão grande é a ingratidão ao serem esquecidas com reiterada frequência essas partes de felicidade que tantas vezes foram experimentadas, sem que jamais se pensasse no que podiam representar para a vida.

O homem busca a novidade sem reparar nas contrariedades que ela pode lhe apresentar. Não é possível ir em busca do bem futuro se é retirado o valor daquele que iluminou de vez em quando os dias da existência, pois os dois, o passado e o futuro, são da mesma natureza.

Assim, teremos que, conservando fresca a imagem de todo bem vivido, preserva-se o espírito de sofrer as consequências desse vazio que sentem os que jamais acham nada que os satisfaça, e que se manifesta num desassossego e numa ansiedade que nenhum recurso parece poder acalmar.
 
(Coletânea Revista Logosofia – Tomo 2, pags. 229 a 231 – Carlos Bernardo González Pecotche – RAUMSOL)



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