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04/06/2022 às 08h00min - Atualizada em 04/06/2022 às 08h00min

O Sol é para Todos

EDMAR PAZ JUNIOR
REPRODUÇÃO/INTERNET
Harper Lee é uma escritora americana e seu livro apareceu pela primeira vez em uma lista feita por bibliotecários em 2006 como o livro que todos deveriam ler antes de morrer, seguido da bíblia, e foi considerado ainda como o melhor romance do século XX pelo Library Journal.

A história gira em torno de um caso de racismo que ocorreu nos EUA, no início dos anos 1930, de um negro foi acusado de estuprar uma menina branca. Mas por que envolveria racismo essa situação? Justamente porque o homem não havia cometido tal crime. Pode se tratar de uma história comum, que infelizmente ocorreu muitas vezes antes na história, principalmente durante o apartheid americano e até mesmo agora, que vez ou outra acontece nos dias atuais, quando em situações circunstanciais o racismo aflora, mas não podemos deixar de olhar com atenção.

Acredito que a sociedade, já desde aquela época, era e ainda é hoje composta em sua maioria de pessoas boas, mas quase sempre, quando em contato com alguma mente diabólica, se deixa levar de uma maneira incrivelmente fácil para tendências ruins. Theodore Dalrymple, médico e escritor britânico, apresenta um conceito interessante sobre um estado psiquiátrico chamado folie à deux, em que pessoas que são mutuamente dependentes e possuem uma estreita parceria incomum vêm a partilhar da mesma ideia delirante. Normalmente, a pessoa com personalidade mais forte e de mais inteligência é o originador da ideia delirante, em que acredita com certeza inabalável; o outro, mais fraco e menos inteligente, prossegue com isso, pois não tem força para resistir. Lamentavelmente, essas pessoas têm um poder de persuasão impressionante. É sutil a forma como a autora retrata essas influências no livro, mas são perceptíveis.

Um dos toques de classe do livro é a respeito de como a inocência do acusado vai tentar ser provada diante do tribunal por um advogado...branco! Um personagem muito influente na pequena comunidade em que ocorreu o suposto crime, onde geralmente as pessoas preferem não se “intrometer” na vida alheia. Muitos foram os ditos “conselhos” para que o advogado não se envolvesse no caso, colocando em xeque sua moral e seus princípios: assumir um caso complexo, emblemático e fazer o que é certo, ou simplesmente “cuidar da sua vida?”

O personagem é a representação de um homem de princípios, aquele que busca sempre agir da maneira certa e justa, independentemente de quem irá ajudar. Demonstra qualidades que transforma qualquer homem quase num modelo perfeito de vivência: temperança, parcimônia, honestidade e principalmente ter a direção, a personalidade e o caráter voltados para a busca da verdade. É interessante analisar esse desenvolvimento do personagem durante a trama.

Talvez apenas esses elementos que foram citados acima, por si só tornassem o livro atrativo. Contudo, Lee vai além e apresenta o enredo e todos os acontecimentos da história pela ótica da filha do advogado, que possuía apenas 8 anos. Assim, junto com o case principal do livro, são contadas histórias de infância, brincadeiras de férias e aventuras de irmãos e amigos numa pequena cidade. A leitura se torna prazerosa, pois é como se olhássemos a trama por uma fresta na porta, suficiente para entender todas as circunstâncias, mas não sendo essa a prioridade da narradora, que por ser uma criança, não “entendia muito bem essas coisas de adultos”.

A pequena narradora faz análises, julgamentos e expressa opiniões sobre os acontecimentos e sobre a personalidade dos outros personagens, tudo isso com uma destreza, habilidade e inteligência acima da média, e óbvio, com o olhar de pureza de uma criança. Ao tratar de um tema tão pesado, duro e pernicioso, a autora consegue quebrar a dura carcaça que envolve a crueldade dos personagens quando mostra o ocorrido pela visão de uma criança, deixando no ar uma esperança de que no final tudo vai ficar bem. O entendimento de uma criança às vezes se torna mais sábio que o de muitos adultos. Me recordo assim, da passagem de Mateus 19, 14: “Jesus, porém, disse: ‘Deixem as crianças, e não lhes proíbam de vir a mim, porque o Reino do Céu pertence a elas’”. A narrativa magnífica do caso contada por uma criança é o ponto elementar da história, um “toque de midas”, que transforma e joga magistralidade sobre a obra.

É um livro de ficção, uma espécie de “ficção real”, em que os personagens são fictícios, mas uma história possível. Um tipo que compõe uma das melhores espécies de leituras, pois nos faz refletir sobre as vivências e experiências diárias, e principalmente por nos banhar com a crença de que, mesmo diante das dificuldades que nos acontecem todos os dias, é possível olhar com “olhos de criança” e enxergar possibilidades que não sejam tão pessimistas.

O Sol é para todos, Harper Lee.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 



 
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