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27/10/2020 às 08h00min - Atualizada em 27/10/2020 às 08h00min

A praça é estarmos juntos

ENZO BANZO

Teve Arte na Praça. A frase seria comum nos últimos 17 anos, mas agora, quando o encontro físico das coletividades virou ameaça à vida, pode perguntar o desavisado: como assim? Sim, teve mas foi online, viva live. Mas faz sentido se falar em Arte na Praça fora da Praça Sérgio Pacheco, sem o rito do reencontro e do abraço entre as pessoas, sem a poeira subindo na dança que se levanta? É claro, não é o mesmo rito, e a saudade do amor e do humor das praças cheias de pessoas persiste. Mesmo assim, teve Arte na Praça, e a praça virtual se fez lugar dos encontros, das energias convertidas em torno de um mesmo agora, do espaço para (re)conhecer a verve de diferentes artistas: a arte é a praça, a praça é o sol e é a chuva, somos luz e somos água sobre a terra e pelos ares.

Toquei no Arte na Praça. Uma preparação toda diferente, que nos valham os protocolos. Além de passar o som, tivemos que passar o sangue (piada do genial Lucas Carcas): na manhã de domingo, toda a equipe técnica e artistas estavam no Umuarama para furar o dedinho no teste da Covid. Testados, tudo certo, liberados.

Quem toca nesse tipo de evento sabe que dia de show não é a melhor hora para acompanhar as outras apresentações, tamanha deve ser a concentração no próprio trabalho, da preparação ao palco, que é depois lentamente digerido. E aqui estou, dividindo-me cantor-cronista na busca de um breve comentário sobre o que se passou. Uma das diferenças positivas do formato online é que o evento fica gravado (e está disponível no YouTube): passado o furacão pude ver tudo outra vez, como se fosse a primeira.

Assim, como me divido entre quem atua e quem comenta, dividiu-se a talentosa Uiara, apresentadora do evento ao lado de Felipe Sant'Anna (formando um par ultracarismático), que fez o show de abertura. Quem viu a segurança de sua voz e de sua presença não imaginava que era o primeiro show de seu projeto solo, no qual é acompanhada pelo DJ Ávner (figura importante na agitação de nossa cena cultural). No repertório, canções autorais que são prévias de um belo trabalho a se consolidar, junto de obras marcantes do repertório de cantoras negras.

Curioso que vi Uiara há algum tempo cantando em uma banda da cidade, e a sensação que tive foi parecida com a primeira vez em que vi Jack Will há mais de dez anos: artista grande a se revelar. O menino Willian, o Jack, confirmou o prenúncio, e se prefiro não comentar meu próprio show, não posso de deixar de falar dele, que me acompanhou. Mal ensaiamos juntos (tempos pandêmicos), mas Jack sabe sintonizar-se no tempo da música como poucos, intuição e técnica, exatidão e improviso. Jack Will é o corpo da música, o que quer dizer a alma.

Saio tropeçando entre os equipamentos, o público não está lá, mas sinto a energia que em torno dali se conjuga. Numa tarde marcada pela força da presença feminina, a nós se seguiram os shows de Lizandra e de Fernanda Vital. A primeira, que é de Patos de Minas, vira e mexe pinta aqui. Cantando sobre a batida leve de seu violão e de um piano que aprofundava as harmonias, conjugava em sua figura o que dizia a delicadeza de suas canções: compartilhar. Fernanda Vital, que lançou "Mímesis", disco de apurada produção, cumpriu o desafio de levar ao palco a densidade do estúdio, o que conseguiu com sucesso ao juntar as batidas eletrônicas à organicidade de sua banda de timbres precisos, com uma atitude que não precisa tocar rock para ser rockeira.

Veio MC Tha, de São Paulo, cantando sobre as bases da performática produtora musical Malka. Se para mim o Arte na Praça sempre foi um ritual, ali estava MC Tha, figura negra vestida de branco a abrir os caminhos. Eu já acompanhava ao vivo na TV quando ela cantou a oração "Jorge da Capadócia": sentou praça na praça virtual, céu em estrondo sobre a cidade de verdade. MC Tha não contém o choro, pelos se arrepiam pelas redes. MC Tha canta no terreiro da gente negra que é a gente de Uberlândia. É terra de Grande Otelo e de Pena Branca, de Mãe Irene, de Uiara, de Jack Will. E eu estou feliz porque eu também sou de sua companhia.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 

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