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23/06/2020 às 09h39min - Atualizada em 23/06/2020 às 09h39min

Encostando tabus

ENZO BANZO
Encosto é uma palavra tabu. O tabu é algo que assusta. Medo de encosto, medo do espírito, medo do corpo, do corpo do outro, medo do tabu. Medo da morte, que nunca foi tão viva, vírus-encosto, presidente-encosto. Encosto, medo da presença evidente que se percebe e não se vê. Encostar, gesto corriqueiro que virou tabu, ou deveria, enquanto durarem esses tempos: horror da festa funesta dos vizinhos do bairro Santa Mônica, terror do abraço no gol do Flamengo circundado pelo hospital de emergência. Silêncio pra quê? Fogos pra quê?

Transformar o tabu em totem é a máxima da poética de Oswald de Andrade, que segue e seguirá atual enquanto vivermos no reino dos tabus, que sustentam forças de poder. Para desencostar esses encostos, é preciso segurar o tabu pelo cangote, encará-lo de frente, encarná-lo ao reverso. Converter-se em encosto que incomoda, promove a reflexão crítica, liberta o corpo, expurga-se em viva catarse artística.

É essa a atitude corajosa de um trio de artistas da cena local, o produtor musical Davi The Producer, a cantora Natania Borges e o rapper Vaine, que lançaram no último 12 de junho o EP "Encosto". Aqui mesmo, nesse espaço, comentei em minha última coluna sobre o videoclipe de "Encosta", segunda faixa do EP, lançada como single para preparação do conjunto da obra. Lá, já falava do movimento de ser "anti e antídoto", que se confirmou com o lançamento das cinco faixas do álbum.

Sensorialmente, o disco já arrebata pela qualidade sonora e inteligência musical de Davi The Producer, que sabe conjugar as variações do que se diz e se canta com o movimento dos arranjos em seus beats e timbres, construindo uma sonoridade de ritual pop, sobre a qual passeiam o canto preciso e melódico de Natania, e o incisivo canto-fala de Vaine, como vozes complementares.

O álbum é aberto por duas faixas com divisão não apenas de vocais, mais de jeitos de cantar e compor, construindo um movimento poético e musical que envolve o ouvinte pelo que se canta-diz e pelo corpo que dança. "Identidade" é convocação e declaração de princípios; "Encosta, faixa-tema, avança na afirmação de uma presença individual e social, corpórea e artística: "vai dizer que cê não sente quando / nossa voz ecoa pelos baile". Assumir o jeito próprio de falar e rimar é confirmação da identidade, anunciada na abertura: "vai dizer que cê não gosta, como?". Em sequência, duas faixas solo em que as personas se revelam e se aprofundam.

Natania Borges, mineira baiana, cantora negra e trans, olha no fundo do olho do tabu a ser derrubado quando canta "Bruxa", outro título-tabu: "o corpo que assusta vocês se apresenta". A batida menos acelerada, em um clima sonoro que gira em torno de um centro harmônico contínuo, cria o ambiente do feitiço, um feitiço que está "dentro da voz", e ao qual nos entregamos em comunhão na entoação do refrão. A vocalização da derrocada do tabu é renovadora: "recria o mundo, trava que abre caminhos, trava destrava, trava destrava".

Já Vaine, paulistano do Triângulo, sintetiza a urgência de seu canto no título de seu solo: "Suando sangue". A faixa é metalinguística e autobiográfica, reflete sobre o rap e a vida do rapper, o próprio Vaine, revelando inclusive o processo de criação do álbum: "calma aí Davi cê me mandou uns beat / puxo lá no drive escrevo quando der". Vaine, em sua veloz e densa silabação, afirma a necessidade de comunicação, de demarcação de uma presença que não quer viver para morrer tabu: "tô falando e cê não quer entender". Afirmação de corpo vivo e presente que se completa em "Afronta", faixa que finaliza o ritual renovador: "eu sou tudo aquilo que você finge que não vê".



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