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26/05/2020 às 09h28min - Atualizada em 26/05/2020 às 09h28min

Sem volta para aquele futuro

ENZO BANZO
Sempre tive comigo que o futuro do pretérito seria um tempo inexistente: aquilo que aconteceria (mas que nunca aconteceu) constituiria uma mera abstração. Jamais adiantaria chorar o leite derramado evocando-se um futuro sonhado lá atrás, mas que, no suceder dos dias, não chegou à vida de fato. Imperfeição ainda maior se daria quando esse futuro do passado viesse antecedido por qualquer coisa escrita ou dita no pretérito imperfeito do subjuntivo, aquele do "se": se eu fosse por outro caminho, não estaria aqui (mas o caminho foi esse e aqui estou); se eu não tivesse nascido, eu não seria eu (mas nasci, e sou). O que será, que seria, ninguém nunca saberia.

Pois uma das aberrações desse tempo de agora é a presença da sombra de um futuro em que deveríamos estar, mas do qual fomos desviados. Acabamos por desenvolver um diário pessoal daquilo que a gente faria, o que cada dia seria, se não fosse a pandemia. Eu, por aqui, teria feito algum show, ido à aula, viajado pra não sei onde, buscado meu filho na escola. Sem máscara e sem medo. Mas aquele presente, que a gente achava que seria, virou futuro do passado. Na linha desviada de um hoje assustador, aqui estamos a chorar mais de vinte mil mortos, enquanto o gabinete tirânico, no delírio da indiferença, aproveita para passar a boiada.

Parece até que fomos parar naquela linha alternativa do tempo em "De volta para o futuro 2", filme hollywodiano de 1989 estrelado por Michael J. Fox (quem não viu?). Na tela do cinema e da sessão da tarde, o jovem Marty McFly partia do seu presente nos anos 1980 para o futuro de 2015 (um futuro lá sonhado que para nós já é passado). Quando voltava, encontrava um 1985 diferente, que não era o mesmo de antes de sua viagem no tempo: em uma nova era sombria, o mundo era dominado pelo vilão Biff, que bem poderia ser uma versão caricata de nosso caricato presidente (e do presidente deles). O cientista maluco Doc Brown explicava o desvio a McFly em um quadro-negro: a reta que rumava para o futuro, tal como deveria ser, desviara-se em um algum ponto, provocando uma curva em direção àquele novo presente em forma de pesadelo. Para colocar o tempo na linha, era preciso viajar de volta para o passado.

Aqui no nosso mundo real, uma máquina que voltasse alguns meses atrás talvez evitasse o surgimento e a propagação do vírus corona pelo mundo, poupando-nos  da dolorosa morte de milhares de pessoas, do medo que nos aflige, de uma vida que parece não ser a que deveríamos viver. A máquina nos possibilitaria retomar aquele mundo que esperávamos, em nossos planos limitados. Regressaríamos àquilo que hoje converteu-se em futuro do passado. Mas uma pulga insiste em coçar e doer atrás da orelha: nessa linha retomada, seria evitado o brutal assassinato do menino João Pedro, aos 14 anos, em casa, no Rio de Janeiro? Provavelmente, não. A linha do tempo que levou à morte do garoto pelo crime institucionalizado vai longe, muito mais longe. Para sanar nossas dores e mazelas, seria necessário voltar mais e mais.

A tal máquina do tempo é sonho de ficção: cá estamos e daqui teremos que seguir, sem volta para aquele futuro. De onde virá a luz para esse mundo sombrio? Nos últimos dias, um sinal surgiu da voz de outra criança, em um vídeo publicado nas redes sociais de Caetano Veloso. O compositor assim o apresenta: "o menino Otto faz meu samba dizer tudo o que, quando o fiz, quis que ele dissesse". A surpresa do canto do garoto nos desautomatiza e revigora. Seja qual for a linha em que orbite o tempo, ainda há luz, ainda vibra, ainda canta: o grande poder transformador.



O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



 
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