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04/06/2019 às 08h07min - Atualizada em 04/06/2019 às 08h07min

O traço humano de Valt

ENZO BANZO
Em meados dos anos 90, quando comecei a transitar pelos eventos culturais da cidade, uma das coisas que me fascinava era a presença de figuras um pouco mais velhas que eu, de uma geração anterior, nas quais parecia pulsar uma inteligência, uma vivacidade e uma produção artística que em nada ficava devendo aos grandes nomes da arte nacional. Novato entre gente mais vivida e muito interessante, guardava silenciosamente admiração por alguns "ídolos" que observava de longe nos palcos ou mesas de bar. Saíamos para ver o Edson Júnior ou o Maurício Winckler tocando suas guitarras indomáveis, e acabávamos nos deparando com personagens que emanavam uma afirmação da possibilidade de uma vida inteligente, crítica e boêmia em nossa não-capital. Ali pelo centro da cidade, num roteiro que sempre terminava em alguma mesa do Bar do Cowboy, uma destas figuras que me instigava era a do cara que fazia espertíssimas tirinhas para o jornal “Correio”, o Valtênio.
 
Seu traço era inconfundível. Pouco conhecedor do mundo de charges e HQs, nunca deixei de reconhecer de imediato qualquer trabalho dele. É só bater o olho, seja num jornal, numa revista, num livro ou numa parede: é do Valt. Não só o traço, como também o humor crítico e político de suas representações urbanas e contemporâneas. Nunca me tornei próximo dele, porque a vida assim não nos conduziu. Com o tempo ele também passou a saber quem eu era, mas nunca perdi aquela ingênua reverência que temos por alguém cujo trabalho artístico e persona admiramos.
 
A última vez que o vi faz pouco mais de um ano, na Noite Literária de lançamento de seu livro "Náufrago - a um traço da humanidade" (Editora Subsolo/PMIC). Trocamos algumas ideias das quais não me lembro bem. Mas não me esqueço da força emblemática de sua presença, com aquela camiseta clássica da boca-língua dos Stones, a barba branca rala por fazer, o meio riso entreaberto de quem está sempre a perceber no mundo uma leitura para além do óbvio. Valtênio era a arte pop, urbana e cotidiana encarnada. Por alguma distorção, eu sempre o via como um personagem de seus próprios quadrinhos. Por alguma associação, naquela noite eu o percebia como um sobrevivente em um mundo alheio e raso. Era ele o náufrago.
 
Desta obra derradeira, uma das imagens mais marcantes é a do astronauta deitado no chão do espaço, dormindo diante da Terra coberta por um sem fim de BLA BLA BLA BLA BLA BLA (assim escritos, em várias cores, sobre o planeta). O náufrago ultramoderno navega pelo espaço, não pelo mar. Ao invés do desejo incessante do retorno, este náufrago está tranquilo, liberto do tormento do excesso de informação sonora e visual, física e digital. A fuga-ausência é a única possibilidade de paz, alívio, sono. Valtênio, náufrago na própria existência, parecia assim se colocar na vida real, da qual extraía criticamente o universo particular e social de sua obra.
 
De um ano pra cá, deflagrada a triste notícia de sua enfermidade, amigos e artistas reuniram-se para apoiá-lo. Acredito que este tenha sido o mais belo movimento de seu resgate como pessoa. Se na existência o olhar crítico e profundo nos leva a percebermo-nos como náufragos, os laços do amor e da amizade são capazes de nos puxar para algo que nos faça crer no sentido disso tudo. E se a vida finda, como a de Valt neste último doloroso domingo, a obra é viva e permanece e segue. É preciso viver, sentir, difundir e perpetuar a humanidade do traço de Valtênio Spíndola.


*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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