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16/12/2021 às 08h00min - Atualizada em 16/12/2021 às 08h00min

O novo ataque à constituição com o pretendido marco hidrológico

CLÁUDIO DI MAURO
O Ministério do Desenvolvimento Regional está preparando um Projeto de Lei, ou quem sabe uma Medida Provisória que desfigurará inteiramente a Política Nacional de Recursos Hídricos, abatendo diretamente os fundamentos da Lei 9433/97 que define o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos participativo, descentralizado, portanto, democrático. A legislação de Recursos Hídricos teve seu ápice em 1997 e ainda não teve seus efeitos completamente realizados. Seria indispensável investimentos nas aplicações de seu conteúdo. Mas para isso haveria necessidade de que a água passasse a ser considerada como centro nas políticas de desenvolvimento do Brasil e de seus Estados. Não há vida e nem desenvolvimento sem que se tenha garantia de água e recursos hídricos.

Ao contrário de se preocupar com esses investimentos, mais uma vez, o governo Bolsonaro ataca diretamente a democracia para aprovar uma proposta na qual a água deixará de ser um bem de domínio público, passando a se constituir em um produto, mercadoria, podendo ser privatizada.

Mais uma vez, a Constituição de 1988 e a Lei das águas de 1997 perderão seus fundamentos básicos. As águas no Brasil que atualmente, pelo menos pelas leis não podem ser privadas, terá seu caráter retrogradado à situação da primeira metade do século passado. E é importante se considerar que a legislação sobre água é privativamente atribuição da União e que se constitui em bem essencial, protegida pela Constituição como Cláusula Pétria, não podendo ser privatizada.

Ao tratar de um assunto da maior importância para o sistema de recursos hídricos que é garantir infraestrutura administrada sob gestão dos Estados. Nesse aspecto o Brasil tem experiências bem sucedidas e o Estado do Ceará é um bom exemplo. Esse assunto precisa ser resolvido, mas o governo aproveita para embutir nesse futuro Projeto de Lei ou Medida Provisória a adução privada dos Recursos Hídricos o que certamente atrairá a iniciativa privada para os grandes e polpudos negócios. Pior, incluiu a outorga onerosa como um componente devastador para o Projeto de Lei.

Assim, o Brasil está sendo colocado em leilão, privatizado.

É verdade que a maioria dos Comitês de Bacias Hidrográficas deixam muito a desejar no cumprimento de suas responsabilidades legais. Mas, ao serem constituídos em Parlamentos das Águas, os Comitês abrem a possibilidade de uma discussão efetiva sobre as quantidades e qualidades das águas superficiais. Essa proposta de Lei ataca e enfraquece ainda mais os Comitês de Bacias Hidrográficas. De maneira autoritária decide e retira atribuições dos Comitês, reduzindo suas importâncias. Até mesmo os Planos de Bacias Hidrográficas não serão mais de responsabilidade de aprovação pelos Comitês Federais.

Atacando os instrumentos de gestão dos recursos hídricos, a proposta de Lei, em elaboração, ataca duramente os processos de outorga, ou seja, de obtenção de licença para captação e uso das águas. Há uma nítida condução para o processo de transformar a água em mercadoria.
Veja-se, na fala do Ministério do Desenvolvimento Regional o que se pretende com um dos instrumentos de gestão que ocupa posição de muita importância, a outorga:

“O novo instrumento possibilitará que os usuários outorgados possam, de forma espontânea e temporária, ceder parte ou a totalidade da sua outorga para outro usuário da mesma bacia que necessite manter uma vazão constante em seu empreendimento, mesmo em períodos de escassez hídrica, possibilitando o recebimento, por meio de contrato particular, um valor pecuniário que lhe seja financeiramente viável e negociado entre as partes.”

Os textos em itálicos são retirados do powerpoint apresentado pelo representante do Ministério do Desenvolvimento Regional no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Essa apresentação tem o sentido de afirmar que o tema foi discutido com os membros do CNRS.

O conteúdo explicita com todas as letras que a negociação entre as partes para a “cessão onerosa” será livre para os usuários, bastando que seja firmado um contrato particular negociado. A única exigência é registrar essa outorga na autoridade que forneceu a expedição.

Ou seja, o outorgado poderá vender sua outorga total ou parcial.

Ao órgão outorgante caberá tão somente registrar as cessões onerosas de uso dos recursos hídricos de cada usuário para fins de realizar fiscalização. Uma fiscalização que raramente, para não dizer, que nunca acontece. Ou seja, mais uma vez o interesse privado estará acima de tudo.

Recentemente foi concluída uma dissertação de mestrado, na UNESP, em que a candidata demonstrou com todas as letras, após consulta e entrevistas em órgãos outorgantes que eles não possuem condições de realizar as fiscalizações necessárias e indispensáveis. Os órgãos não possuem servidores na quantidade minimamente necessária, não possuem veículos e profissionais para realizar as vistorias de campo e nem recursos para alimentação e diárias daqueles profissionais que devem sair para fiscalização, no campo.

Em última análise é mais uma jogada para apenas atender interesses privados, em destruição do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Mais uma vez, o Brasil está sendo colocado em leilão para os endinheirados e usuários de péssima índole.

Esse processo de privatização da água nem podemos considerar como “disfarçado”. É completamente escancarado.

As alternativas para contrapor às mudanças climáticas, à política de construção de cisternas e projetos que atendam comunidades específicas são completamente ignoradas no texto oferecido na apresentação ao CNRH.

Os cidadãos em geral, os órgãos vinculados ao SINGREH, o Ministério Público não podem permanecer calados diante dessa arbitrariedade pretendida pelo (des)governo federal.

É indispensável a compreensão de que os temas relativos à água como bem público são atribuições de Estado e não de governos. Não podem os governos de plantão, a seu sabor, modificar a espinha dorsal do Sistema.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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