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28/01/2021 às 08h00min - Atualizada em 28/01/2021 às 08h00min

Dentro de mim

IVONE ASSIS
Olhando o mundo pela janela, deparei-me com o poema "Nosso tempo", de Carlos Drummond de Andrade, publicado em “A rosa do povo” (1945). Nada mais propício para representar o assombro hodierno. O poema traz o modo com que o poeta escolheu, por meio de sua poética, relatar seu tempo histórico-cultural. Nele, a semântica vai, metaforicamente, se construindo, por meio do olhar do poeta, que reproduz a alienação do homem, fato tão atual. Com a licença do poeta, vou citar boa parte de seu poema, por isso, caro leitor, considere esta Literato de hoje como sendo do mestre Drummond e não desta aprendiz que vos fala.

“Esse é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra. Visito os fatos, não te encontro. Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz dormindo acesa na varanda? Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens completos. Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir.” (DRUMMOND, 1945).

“Esse é tempo de divisas, tempo de gente cortada. De mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos. Mudou-se a rua da infância. E o vestido vermelho - vermelho - cobre a nudez do amor, ao relento, no vale. Símbolos obscuros se multiplicam. Guerra, verdade, flores? [...].” (op cit.).

“Certas partes de nós como brilham! São unhas, anéis, pérolas, cigarros, lanternas, são partes mais íntimas, e pulsação, o ofego, e o ar da noite é o estritamente necessário para continuar, e continuamos. (III) E continuamos. É tempo de muletas. Tempo de mortos faladores e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado, mas ainda é tempo de viver e contar. Certas histórias não se perderam.” (op cit.).

“(IV) É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco. É tempo de cortinas pardas, de céu neutro, política na maçã, no santo, no gozo, amor e desamor, cólera branda, gim com água tônica, olhos pintados, dentes de vidro, grotesca língua torcida. A isso chamamos: balanço. No beco, apenas um muro, sobre ele a polícia. No céu da propaganda aves anunciam a glória. No quarto, irrisão e três colarinhos sujos [...].” (op cit.).

“[...] Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa, olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso [...]. Escuta o horrível emprego do dia em todos os países de fala humana, a falsificação das palavras pingando nos jornais, o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores, os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar, a constelação das formigas e usurários, a má poesia, o mau romance, [...] // (VIII) O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas prometa ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta um verme.” (op cit.).

Na fila da desilusão, como muito bem escreve o poeta Ademar Inácio da Silva, em sua obra “Apesar da barbárie”, no poema “Tobogã”: “A vida desliza no tempo, vai brincando de tobogã. Tão veloz quanto o pensamento, funde o hoje com o amanhã [...]”.

O poema abre meus pensamentos, a rua cala minhas palavras. Não encontro alento para afagar o ego. Vou diminuindo até me tornar um escaravelho. Então, qual Sísifo, sigo rolando a pedra morro acima, em um esforço descomunal, à procura do eu perdido dentro de mim.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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