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30/04/2020 às 11h06min - Atualizada em 30/04/2020 às 11h06min

O que é o social?

IVONE ASSIS
“O poeta, imóvel dentro do verso, cansado de vã pergunta, farto de contemplação, quisera fazer do poema não uma flor: uma bomba [...]” (ANDRADE, 1990), neste fragmento de um poema de Drummond encontramos a angústia do poeta em ver o mundo se passar diante de seus olhos, sem que ele nada pudesse fazer. Drummond escreveu este poema quando buscava respostas para o que foi o conflito espanhol que acendia uma guerra civil. O poeta questionava o anseio por respostas e a impotência do homem diante da guerra. Arguia sobre o silêncio de Vargas, quanto à informação que não chegava. O ano era 1937, mal sabia o poeta que já batia à porta a Segunda Guerra mundial, que duraria de 1939 a 1945, e para este período, outra vez o poeta levantou a voz e trouxe “A flor e a náusea”. Mas isso era apenas uma parte, viria ainda a Ditadura Militar no Brasil, que vigoraria de 1964 a 1985. Naqueles anos de chumbo, o discurso poético exigia mais cautela mediante a repressão. O poeta cifrou o terrorismo disseminado pelas forças políticas e de Estado. Em todos os períodos de batalha, Drummond esteve presente com sua poética comprometida com o tempo histórico.

No cinzento agosto de 1987, o poeta se foi, deixando, porém, o seu legado. A palavra é viva e atemporal, desse modo, aquele grito ecoaria pelos anos seguintes. E, hoje, ecoa agudo e seco, em minha contemporaneidade. O poeta foi combalido, mas a guerra continua. E a guerra, como se sabe, em qualquer ocasião ou ambiente, desestabiliza e aniquila. O poeta arma-se com as palavras, protege-se com os papéis, e sopra o fôlego da esperança por meio do conhecimento. As contingências do colapso e da desordem afligem até a própria tinta que, agoniada, borra o papel. “De que vale um canto?”, indaga o poeta.

A arte, sempre viva e atual, busca traduzir as inquietações do homem, em qualquer tempo ou lugar. E por meio de um caminho trilhado pela literatura, em uma descoberta de significados, registros, símbolos, linguagens, cifras... brotam as percepções do homem. Walter Benjamin, por ocasião da guerra de trincheiras, escreveu: “No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” (BENJAMIN, 1987, p. 198). Então, Carlos Drummond de Andrade, um tempo depois, escreveu “Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem” (Andrade, 1987, p. 13).

Ora, apoiada em Walter Benjamin (1987, p. 224), sei que “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Vivo um tempo em que a tecnologia é capaz de me aproximar um pouco mais do cenário mundial, contudo, nada se compara à experiência da experimentação. Meus olhos contemplam a rua lá fora, o medo assola o mundo. Os jornais televisivos e virtuais trazem as notícias em tempo real. Estamos em outro milênio, distante da vivência do poeta e do filósofo citados, porém, dentro do turbilhão que constrói a história da humanidade. De algum modo, está tudo muito próximo.

A guerra é outra. Os concretos das cidades continuam armados, mas sua população está destruída. Estamos vivendo uma guerra silenciosa, invisível. No poema “Stalingrado”, Drummond declara: “A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos, / apalpo as formas desmanteladas de teu corpo”. É estarrecedor. O tempo não apagou a mácula. Agora, as cidades recriam o poema. A boca faminta e insaciável dos cemitérios pede mais corpos a todo instante. Famílias são dizimadas. “A flor e a náusea” decoram os túmulos que guardam aqueles que não puderam ser velados. Não. A causa morte não é a mesma. O laudo aponta assassinatos, suicídios, peste, infarto, fome, acidente... E os olhos apontam dor, saudade, emudecimento, enquanto a voz embarga o choro. Diante de tanta afronta ao ser humano, o que é o social?



Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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