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29/10/2019 às 08h50min - Atualizada em 29/10/2019 às 08h50min

Os sucessos são quase sempre os mesmos

ENZO BANZO

Quem vive no campo da canção lida, o tempo todo, com uma confusão entre qualidade artística, sucesso de mídia, repercussão. Como este universo com o qual todos lidamos desde sempre é intimamente associado à veiculação nos canais de massa, parece que para um artista acontecer é preciso que se torne conhecido, um pop star. Aqueles que figuram à margem parecem não existir para o grande público. Lembro de quantas vezes me perguntaram se eu queria tocar no Faustão, e se era uma frustração ser um compositor fora do foco da comunicação em larga escala.
 
Mas o caminho da arte passa longe de coincidir com a trilha do sucesso (quando convergem, o mundo pode mesmo mudar de rumo, em frenéticas beatlemanias). Para alguns, o que se busca é a profundidade do alcance estético, que muitas vezes precisa girar fora da curva do previsível. E daí podem brotar trabalhos experimentais, capazes de questionar os limites da própria linguagem da qual emergem.
 
Era nisso que pensava na última semana, motivado pela notícia da morte de Walter Franco, nome do qual a grande maioria não tem sequer notícia. No começo da década de 1970, período marcado pelas rupturas comportamentais materializadas em experimentalismo, Walter Franco foi quem mais longe e fundo voou neste sentido, no Brasil. O homem das máximas mínimas: "apesar de tudo muito leve". Interessante como os fenômenos artísticos não se limitam ao tempo-espaço de sua ocorrência: eu nem tinha nascido nessa época, e os dois primeiros discos de Walter marcaram profundamente minha visão de mundo. Mais do que a busca incessante do sucesso, sempre valeu para mim, como intuito e projeto estético, o refrão da faixa de abertura de "Ou não", o disco de estreia de Franco: "eu quero que esse teto caia, eu quero que esse afeto saia".
 
Se de longe no espaço e no tempo brotavam referências para um propósito artístico não coincidente com a aceitação do grande público, de perto, aqui de Uberlândia, uma outra linguagem artística muito me ensinou e tem me ensinado nesta direção outra. Falo da Dança, e considero um dos privilégios de nossa cidade a convivência constante com uma gama de experimentações capazes de expandir a nossa dimensão sensorial por meio dos trabalhos que emergem por aqui.
 
No último sábado, pude mais uma vez ser provocado por esta linguagem artística que faz do corpo a própria língua. Assisti, pela segunda vez, o espetáculo "Os eventos são quase sempre os mesmos", da Cia Uai Q Dança, com Luciane Segatto, direção de Fernanda Bevilaqua, inspirado no livro homônimo da poeta Lourdinha Barbosa que, sem que eu soubesse, estava ao meu lado na arquibancada do Ponto dos Truões.
 
Assim como Walter Franco não se limita aos limites do que se compreende como canção, a linguagem contemporânea da dança me parece se recusar a aceitar uma demarcação para si própria, colocando-se em busca da superação dos mesmos eventos. A ironia do título do espetáculo e do livro que o inspirou nos aponta para sua singularidade, ao conjugar afirmação e negação, e nesta síntese nos enlaçar em seu impacto.
 
Diante de nós, o espaço-cena se apresenta como um vazio que vai se constituindo de outros vazios enquanto Luciane constrói o chão-cenário com figuras geométricas de fita crepe. Vazio é a única palavra pronunciada pela bailarina ao longo de todas as cenas. Vazio. Um solo que descortina as muitas vozes da solidão. Alguém cantando longe daqui. O eu é múltiplo, fragmentado e íntimo, troca de roupa e de intenção, pode ser lírico e pode ser paródico, ao mesmo tempo quieto, incontido, perplexo.

A assinatura de Fernanda Bevilaqua está ali: a mais profunda delicadeza investida em um projeto de máxima experimentação estética. É este o sucesso da arte, o sucesso com o qual devíamos nos preocupar: o artista em busca da máxima potencialidade de sua expressão; o espectador confrontado com a máxima possibilidade de sua sensibilidade. O olho, orifício; o passo, precipício.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.





 

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