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10/09/2019 às 08h45min - Atualizada em 10/09/2019 às 08h45min

De quando não vi Itamar Assumpção

ENZO BANZO

Há histórias entre amigos que de tão contadas parecem vividas até por quem não estava lá. Foi o que (não) aconteceu comigo nos primeiros anos dos 2000. Em um mundo sem internet, fiquei sabendo por um jornal que Itamar Assumpção faria um show em Belo Horizonte. Itamar era para mim e para quase todos ao meu redor a expressão máxima da inventividade artística (o que era pra gente o aspecto mais importante da vida). Mas BH estava longe, eu tinha algum compromisso na data, a vontade de ir veio junto com a sensação da impossibilidade.
 
Comentei sobre o show com alguns chegados e, para minha surpresa, dois deles − Talles e Ricardim − tomaram aquilo como uma missão, apesar de sermos todos artistas estudantes durangos. Ricardim, com família em Nova Lima (grande BH), garantia o lugar pra ficar. Quanto ao transporte, conheciam o motorista de uma kombi que ia toda semana pra capital. Mas não era um veículo de transporte de pessoas, e sim de... animais mortos: escorpiões, morcegos, cabeças de cachorro. Tomaram coragem, armaram a carona, e foi nesse ambiente que cruzaram cerrado, morros, Serra da Saudade, Luz, Betim, Contagem.
 
Naquele início de milênio, tínhamos todos um visual mais pra anos 1970 do que pra virada de século, algo como os novos baianos do cerrado. Os rapazes, nesse estilo discreto, chegaram a BH e foram direto pro Teatro Alterosa. Itamar faria três shows, de sexta a domingo, e a meta era não perder nenhum, mesmo sem grana pra tanto ingresso. Sabe-se lá como, depois do primeiro show conseguiram conversar com a grande convidada da noite: Elke Maravilha! E narraram sua saga para chegar até ali, na kombi dos medonhos bichos-defuntos. Elke Mulher Maravilha adorou aquilo tudo, e não hesitou em espalhar a notícia para a banda e para a equipe. Pronto, estavam garantidas as cortesias para as outras noites.
 
Enquanto isso, Danislau e Alê pegavam o busão a tempo de chegar pro show de sábado. Mas naquela noite tudo seria diferente, já que nas prévias de camarim Itamar foi apresentado a uma garrafa de cachaça de Salinas, que bebeu até o último gole. O que já seria sério, nesse caso, era mais sério ainda: Itamar tratava de um câncer, e se apresentava nos intervalos da quimioterapia. No show, seu tema era a morte, com a qual lidava dia a dia, frente a frente. Era esse o papel de Elke: interpretava a morte, branca, pálida, provocante. Mas Ita bêbado voltou na mesma canção cinco vezes, teve que ser retirado do palco pela própria banda, enquanto Danislau jurava presenciar uma performance genial.
 
Ao terceiro dia, o ressuscitado Itamar fez um show impecável: "a morte é um bom mote?" Assim começava. Recusou as palmas na primeira música: "guardem pro fim". E destilou toda a precisão de seu som e canto, na profundidade de quem olhava a vida de seu ponto mais tenebroso. Ao final, Elke pediu a palavra: "tem uns meninos aqui que cruzaram mais de 500 km numa kombi com cabeça de cachorro, morcego e escorpião, só pra ver Itamar Assumpção". E nossos representantes subiram ao palco, entre passos desajeitados e cabeleiras hippies. Itamar apenas os fitou em silêncio, enquanto Ricardim gaguejava a história. De quebra, foram convidados ao camarim, onde Ita perguntou: "são vocês? Deveriam ter vindo a pé". Assustou-os para depois acolhê-los num abraço.
 
Itamar, que completaria 70 anos este mês, ascendeu pouco tempo depois. Não cheguei a vê-lo, na vida ou no palco. Lembro-me da primeira vez que Serena − sua filha, nossa amiga, que também rumou em ascensão − me ligou: os Porcas Borboletas tocariam no lançamento da discografia completa do Nego Dito. De passageiros, fomos conduzidos a motoristas da música de Itamar Assumpção. Nos era dada a chave para dirigir a sofisticada kombi que transforma a morte em som que vibra. Me calei feito um mineiro. No mais, vida de artista.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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