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19/11/2018 às 18h33min - Atualizada em 19/11/2018 às 19h33min

O adeus à pianista Nininha Rocha

Adreana Oliveira
Maria Constança da Rocha. O nome é forte, digno de uma mulher batalhadora, talentosa, independente. Nininha Rocha, como ficou conhecida, traz suavidade à personalidade da pianista uberlandense que faleceu no domingo (18), aos 84 anos de idade. Amanhã, a artista completaria 85 anos. Ela deixa três netos: Tatiana, Carlos e Sérgio Nery; e três bisnetos: João, Mariana e Carlos.

Os amigos e familiares deram adeus à Nininha com homenagens na funerária Ângelo Cunha, onde o corpo foi velado, e no cemitério Campo do Bom Pastor, onde foi enterrado no final da tarde de ontem. Músicos de diferentes gerações, jornalistas, produtores, educadores, amigos, vizinhos e familiares tinham os olhos tristes, porém, ao lembrar do legado da artista era impossível não esboçar um sorriso.

Há aproximadamente quatro meses os farmacêuticos Sebastião Marcos Tafuri e Moema Barbosa Loureiro Tafuri, que têm uma farmácia no bairro Santa Rosa, estranharam. “Nos demos conta que a Nininha estava sumida. Ela sempre passava na farmácia quando ia à cabeleireira lá perto, pegava o ônibus praticamente em frente ao nosso estabelecimento. Sempre aparecia por lá com alguns folhetos sobre seus projetos e falava muito sobre sua amizade com Grande Otelo”, disse Sebastião Marcos.

“Ela também adorava contar piadas e se preocupava com o que acontecia com a gente. O que fica de mais marcante de sua história é a paixão com que se dedicava à profissão, mesmo sem muitas vezes ter o reconhecimento devido”, comentou Moema Tafuri.

Dona Ophélia Pereira Garcia, esposa de Luiz Alberto Garcia, presidente do Conselho de Administração do Grupo Algar, fez questão de prestar uma última homenagem à musicista. “Meu marido está fora, por isso não veio. Temos um grande apreço por Nininha que por muitos anos tocou toda segunda e toda sexta-feira na Algar. Era uma alegria só. Nininha tinha muita força de vontade e era muito alegre. Até parecia não ter problemas, não deixava transparecer para ninguém. Era uma pessoa de muita persistência e muito valor”, afirmou dona Ophélia.

Ainda segundo ela, Nininha era grata ao grupo. “Ela dizia que aquele dinheiro das apresentações era o único com qual ela podia contar”.

O neto Sérgio Nery, que como os irmãos foi criado em Belo Horizonte, se emociona ao falar da luta que a avó travou durante toda a vida. “Infelizmente na arte nem todos os verdadeiros talentos são valorizados. Ela precisou batalhar muito até o fim da vida para sobreviver. Nunca reclamou, mas sei que se sentia injustiçada.

Era como se fosse um excelente jogador, admirado e valorizado por todos, mas que nunca teve a chance de ir para uma Copa do Mundo”, comparou ele, que atualmente mora em Brasília.

Sérgio afirma não ter herdado o talento musical da avó, mas aprendeu muito com ela. “Desde a disciplina até o prazer de se ouvir uma boa música. Ela foi uma pessoa dedicada, inteligente e muito especial, uma mulher guerreira e inesquecível para todos aqueles que conviveram com ela ou com sua música. Sei que Deus vai recebê-la de braços abertos”, afirmou.

Tatiana Nery, também Neta de Nininha, afirma que a quarta-feira vai ser difícil, o dia em que a avó completaria 85 anos. “Ver tantas pessoas aqui por ela, ameniza um pouco a tristeza, comprova o quanto era querida e talentosa”, disse ela.
Tatiana conta que há seis meses, quando foi internada na UAI TIbery, Nininha ficou inquieta. Pediu que levassem um piano para ela. Na impossibilidade de levar o instrumento, conseguiram um teclado. “Ela melhorou muito e todos que estavam ao redor também porque sua música passou a ajudar outros pacientes”, comentou.

A neta disse ainda que depois desse período a pianista teve uma melhora no quadro geral. Voltou para casa e voltou à vida normal. “Dessa vez não tivemos a mesma sorte. Ela foi internada há uma semana e até havia previsão de alta para quarta-feira (14), meu irmão até veio acompanhar, mas houve uma piora em seu quadro clínico”. A causa da morte de Nininha, no domingo na UAI Tibery, segundo nota, foi infecção generalizada.

TRAJETÓRIA

“A condessa dos pés descalços”


Nascida em Uberlândia em 21 de novembro de 1933, Nininha Rocha começou a tocar piano ainda criança. Tinha apenas seis anos de idade quando se apresentou para o ex-presidente Getúlio Vargas. Sua formação musical foi na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Excursionou pelas principais cidades brasileiras e viajou pelo mundo com sua música: Japão, Espanha, Portugal e Alemanha (onde morou por quatro anos e fez mestrado em Harmonia). 
Nininha também se aventurava no mundo da escrita. Era poeta e escritora com oito livros publicados: "Pés no Chão", "Procissão de velas", "Desarrumaram a casa de Maria", "Escorregaram no Mercado Municipal", "A pianista amou sem medo", "Não toquem na banda", "Um Piano de Uberlândia" e "Não sou uma revelação - Ando descalço com os pés no chão".

Sua trajetória inspirou o produtor cultural Dyego Póvoa que iniciou uma pesquisa sobre a vida da artista a partir do momento em que começou a conversar com ela após um encontro no projeto “Arte na Praça”. O resultado é o filme “A condessa dos pés descalços” (Digiteca Filmes, 2016), idealizado e produzido por Dyego e roteiro e direção de Marcelo Banzai e contribuição do músico e advogado Calvino.

Filha de maestro, se inspirou ao ouvir Cora Pavan Capparelli, aluna de seu pai, tocando piano. “Meu pai dizia que eu era muito menina ainda, mas que logo começaria a estudar”, disse ela em entrevista ao programa “Uberlândia de Ontem e Sempre”. 

Ela contou ainda que o pai ficava com pena dela ficar com os pés dependurados durante a aula e mandou fazer um descanso forrado com feltro, que ela preservou durante toda a vida. Ela não queria colocar os sapatos sobre ele e desde então toca descalço.

“Perdemos uma grande pessoa. Ficamos mais tristes hoje. Como ela mesmo dizia: ‘Não vou morrer: vou pra Júpiter!’. Foi! Tenho certeza que em outra esfera vai produzir muito som belo e alegrar quem estiver ao redor”, disse Dyego Póvoa. 

Dona Iolanda Giglioti de Souza concorda com Dyego. Viúva do trompetista Eurípedes Antônio de Souza, ou “Abacaxi”, que faleceu há 8 anos, ela imagina um encontro dele com Nininha agora. “Eles tocaram por tantos anos juntos e ela sempre foi uma ótima amiga. Quando ele ficou doente sempre nos visitava, sempre tinha uma palavra boa para nos confortar. Falávamos sobre seus livros, tomávamos um bom café e dávamos boas risadas. E ela sempre se referia a ele como Tinoco, por conta de sua semelhança com o Tinoco da dupla com Tonico. Deve ser um encontro festivo lá no céu agora”, recorda.

VIDA PESSOAL
Enquanto sua vida artística era um livro aberto, Nininha tinha um lado enigmático


O músico Ricardo Nocera era criança quando conheceu Nininha Rocha. “Meu avô, Ronaldo Nocera, era amigo dela. Certo dia, no final dos anos 80 ou início dos 90, ele me disse: ‘Ricardo, vem uma amiga do vô aqui que eu quero te apresentar, não saia antes dela chegar’. E era a Nininha”, contou. 

Anos mais tarde, ele iniciou profissionalmente na música como saxofonista. A primeira vez que tocaram juntos foi no Center Shopping. Ele se apresentava com o avô e Nininha passou por lá. “Tocamos ‘Fascinação’, nunca me esqueço. Depois disso nos apresentamos juntos por praticamente 12 anos. Seis desses, toda semana. Meu instrumento é solista e geralmente os outros músicos me acompanham, com a Nininha eu tinha que acompanhá-la. Ela era muito exigente e aprendi muito com seus ensinamentos, me tornei um músico melhor”, disse Nocera.

Ontem, no velório, Giselle Guimarães, que toca violão e canta na igreja, e Thiago Rosa, violonista, dividiam histórias de Nininha com Ricardo Nocera. “Teve uma vez que toquei ‘Ave Maria do Morro’ e ela saiu do banco, foi onde eu estava e com uma carinha mais boa pediu ‘toca de novo pra mim?’”, lembra Giselle.

Certa vez, Thiago teve que trabalhar na festa de aniversário da esposa, Sara, que aconteceu no Clementina Bar & Ristoranti, lugar onde Nininha sempre se apresentava. “Ela era convidada, mas quando chegou lá e viu o piano tocou praticamente a noite toda, e eu tive que acompanhar”.

Nocera comenta que caminhava com ela pela avenida Floriano Peixoto quando passaram por uma igreja evangélica. Nininha entrou e pediu para tocar. “O pianista ficou abismado com o talento dela, e ela tocou todos os hinos”, recorda.

Nocera conta ainda que, apesar de sua vida artística ser um livro aberto, Nininha preservava muito sua vida pessoal. “Ela tinha um lado enigmático, misterioso que não gostava de expor e respeitamos isso. Fica a música, fica o exemplo de autenticidade”. 

Nice Regina Souza é síndica do condomínio onde Nininha morou por muitos anos. “A primeira ata que ela assinou é de 1984. Ela sempre foi muito reservada, tinha seus horários certos para chegar e sair e não recebia qualquer pessoa em casa, tenho sorte de ela ter me permitido ir lá algumas vezes. Tem um acervo todo catalogado e muito bem organizado”, disse Nice.

E Nininha não era do tipo que dava problemas. Nunca desrespeitava a lei do silêncio, nunca tocava antes das 7h e depois das 22h. “Tinha um dia em particular em que ela tocava: domingo, às 9h da manhã. De agora em diante serão domingos mais tristes no condomínio”, afirmou Nice.
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