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11/11/2018 às 08h01min - Atualizada em 11/11/2018 às 08h01min

Um problema que ninguém quer assumir

Mais de 30 mil cães e gatos foram abandonados nas ruas de Uberlândia pela população, que pouco faz pela causa animal

NÚBIA MOTA
Associação de Proteção tem hoje 440 animais num espaço onde deveria abrigar 250 | Foto: Divulgação
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. A tão famosa frase do livro “O pequeno príncipe”, dita pela raposa que se recusa a brincar com o principezinho, mas depois praticamente implora por sua amizade, exprime com exatidão a realidade de outro membro da família da personagem do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, os cães. Embora um dia tenham recebido lar e atenção, hoje, cerca de 32 mil animais, entre cães e gatos, estão abandonados nas ruas de Uberlândia e sem previsão de acolhimento, pois os abrigos da cidade estão superlotados e os poucos protetores não têm mais condições de receber novos moradores em casa. 

“O animal não brotou na rua, ele ou um ancestral foram jogados fora. Hoje, eu tenho que brincar de Deus e escolher qual vou ajudar. Entre um em pé e um com fratura exposta, eu opto pelo com fratura. Não que o outro não mereça, mas eu não consigo pegar tudo”, disse a protetora Elizabeth Santana, mais conhecida como Betinha. 

Além de ser crime, com pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa, o abandono animal é ainda um problema de saúde pública. Mesmo quem nunca teve um animal de estimação em casa ou ignora cães e gatos que perambulam pelas ruas deve se preocupar com possíveis agressões e até mesmo as zoonoses, doenças ou infecções transmitidas para o homem, como raiva e leishmaniose. Hoje, o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Uberlândia tem apenas 13 animais adultos e 4 filhotes apreendidos, todos com o histórico de agressão, levados pelo Corpo de Bombeiros depois de registro de Boletim de Ocorrência (BO). Além disso, a Prefeitura subvenciona cerca de 150 castrações por mês dentro do Hospital Veterinário da UFU e cobre R$ 8 mil dos R$ 40 mil gastos mensalmente pela Associação de Proteção aos Animais (Apa), que atende 440 cães e gatos em um espaço onde caberia 250. “E parou por aí. Eles fazem muito pouco ou quase nada perto do que deveriam fazer”, disse o promotor Breno Linhares Lintz, responsável pela promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente. 

Segundo Breno Lintz, apesar da culpa do abandono animal ser do cidadão comum, o poder público deve assumir a reponsabilidade. “Até porque o cidadão comum paga imposto e parte dessa verba deveria ser destinada para políticas no sentindo de conter a procriação indesejada e ter local para recolhimento. É como o velho abandonado. A Prefeitura subvenciona vários locais para receber idosos, e para animais não deveria ter diferença nenhuma”, disse Breno. 

Para uma solução definitiva do problema, o promotor acredita que a Prefeitura deve investir R$ 3 milhões em castração em massa no prazo máximo de 1 ano. “Esterilizaria 30 mil animais, no preço de R$ 100 cada, e daí a 5 anos não teríamos cachorros de rua, mas tem que ser feita dentro de um ano, senão não adianta. O problema é que, se o prefeito fizer esse tipo de deliberação por contra própria, a população e a imprensa cairiam de pau em cima dele. Já conversei com o prefeito e ele reconhece a necessidade. Por isso, eu compreendo que tem que sair por ordem judicial para que as pessoas não reclamem”, afirmou o promotor.

Até o fim do ano, Breno Lintz disse que serão propostas três ações judiciais contra a Prefeitura de Uberlândia. São elas: a construção de um Hospital Veterinário, um canil com capacidade para cerca de 4 mil cães e um programa de incentivo a adoção. “As pessoas não entendem. A saúde do meu cão tem a mesma importância da saúde da minha filha. Eu tenho certeza que só 15% da população pensa como eu e o resto deveria saber que se trata de saúde pública. Mas tem pessoas que não gostam de animal e não adianta mudar a cabeça delas. O ser humano é pobre e vai continuar assim pelos próximos anos”, disse Breno, que hoje tem em casa 8 cachorros.


Betinha assumiu a responsabilidade de cuidar de 68 animais,
espalhado sem lares temporários | Foto: Divulgação

ABRIGOS
Só 10% dos animais abandonados estão acolhidos temporariamente


Segundo estimativa da APA, apenas 10% dos cães e gatos abandonados em Uberlândia estão temporariamente acolhidos em espaços como hoteizinhos, ONGs, imóveis alugados ou nas próprias casas dos protetores, que fazem campanhas diariamente e tiram do próprio bolso para pagar as despesas com castração, remédio, ração e tratamentos veterinários, até conseguir alguém disposto a adoção. A associação acredita que 4 mil animais vivam sob a proteção de menos de 100 pessoas, consideradas uma exceção em uma cidade de quase 700 mil habitantes. Outros 32 mil cães e gatos não tiveram a mesma sorte e hoje estão nas ruas e 8 mil dormem em casa e perambulam durante o dia. Já o promotor Breno Lintz acredita que a cidade tenha cerca de 200 protetores.

Entre elas está a artesã Elizabeth Santana, que assumiu para si 68 animais de rua e um gasto mensal de R$ 6 mil. E para quem acredita que ela faz porque está à toa na vida, se engana. Betinha tem 4 filhos, um neto, vive do artesanato e ainda tem um problema grave de saúde. Precisa viajar sempre para São Paulo, onde faz um tratamento para conter um tumor no cérebro. Criada em meio aos bichos na zona rural de Uberlândia, Betinha sempre teve animais de estimação e desde 2010 começou a cuidar daqueles em situações extremas, com mutilações, queimaduras, doenças, fraturas e até vítimas de estupro. Os 68 cães e gatos sob os cuidados dela estão espalhados em lares temporários pagos, casas alugadas, uma empresa desativada emprestada por uma amiga e até hotéis contratados. “Aqui na minha casa, tenho 20 e a maioria vai ter que ficar comigo. São cachorros idosos, tem um amputado, um cego, outro complicado de temperamento. Tem animal que não adianta entregar para adoção, porque as pessoas vão devolver”, disse Betinha.

Agora, a artesã está em busca de abrir a ONG Acolhe, como forma de legalizar as doações, dar credibilidade ao trabalho e diminuir as despesas. A intenção é montar um lar de passagem de resgatados, com capacidade para 40 animais, e a expectativa, em princípio, é ganhar um local para fazer o trabalho. “Hoje, muita coisa é do meu bolso, mas faço eventos todo mês, que não cobrem o que eu preciso. Há 3 meses, eu devia R$ 15 mil em clínicas particulares. Aí fiz alguns eventos e hoje devo uns R$ 5 mil. É sempre assim. Estouro um cartão de crédito e uso outro”, conta Betinha.

A protetora faz parte de uma rede de amigos envolvidos com a causa animal, mas todos sem condições de receber mais novos moradores. “Eu tenho um amigo que tem 75. Outra amiga cuida de 70 gatos e 5 cães, outra amiga com 42 cães, outra com 38 e por aí vai. Fora os que têm 4, 5, 10”.  

Elson Torres, presidente da APA, disse que a maioria dos abrigos de Uberlândia é ilegal e, por isso, grande parte dos protetores prefere não falar por receio de multa ou interdição da Vigilância Sanitária. “Eles têm medo de falar, mesmo fazendo um trabalho social”, disse Elson. 

Hoje, a APA atende 440 animais, sendo 380 cães e 60 gatos, quase o dobro da capacidade de 250 vagas. Por mês, são 4 toneladas de ração, despesa com remédio, pagamento de mão de obra, com 3 veterinários contratados e 4 tratadores em uma despesa de R$ 40 mil. “Se eu tivesse que  tratar tudo fora, em clínica, eu não conseguiria pagar minha despesa. Recebemos R$ 8 mil de subvenção da Prefeitura e o restante, temos que nos virar com eventos e doações. Mas a crise pegou feio. Aquela pessoa que guardava uma moedinha e punha nos cofrinhos que colocamos na rua, guarda pra comprar o leite”, disse Elson. 

DE RUA
CCZ só recolhe em situações excepcionais


Segundo a coordenadora do programa de controle da raiva do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), Lilian Vieira de Andrade, desde 2015, a Prefeitura não recolhe animais de rua, a não ser aqueles com relevância para a saúde pública ou com risco de agressão à população. Já animais aparentemente saudáveis, sem zoonoses, não são recolhidos, seguindo o que foi determinado pelo Ministério Público. Hoje, o local tem 13 cachorros adultos e 4 filhotes, todos com histórico de agressão. E apenas aqueles diagnosticados com leishmaniose passam por eutanásia. “Animais que estejam sadios, a gente não pode fazer esse procedimento. Mas ainda recebemos ligação da própria população, querendo que a gente faça eutanásia. Eu não consigo entender”, disse Lilian. 

Hoje, todos os animais recolhidos no CCZ foram levados pelo Corpo de Bombeiro, com registro do Boletim de Ocorrência, também como foi determinado pelo MP. “Eles são observados por 10 dias, vemos se têm carrapato, fazemos exames de detecção de leishmaniose e outros exames. Se estiver tudo bem, liberamos para adoção. Tem muitas pessoas que vem aqui para ver se tem animal de interesse, mas eles querem de raça, só que os que estão aqui não têm raça definida”, disse Lilian. 

A veterinária alerta a população para a posse responsável, ou seja, para que apenas adquiram cães e gatos aqueles que realmente têm condições financeiras e que gostem de animais. “Se não tem condição, não tenha, porque é uma vida que está em jogo e abandono é crime. A vacina de raiva é a única gratuita para zoonoses. Além disso, o dono tem que vermifugar e vacinar contra outras doenças que acometem só animais e os matam”, disse a coordenadora. 

Segundo a protetora Elizabeth Santana, a Betinha, o aumento de criadouros clandestinos e roubos de animais possibilitaram encontrar cães de raças com preços acessíveis a todas as classes da população. Com isso, é grande a quantidade de cachorros Shih Tzu encontrados por ela na rua, por ser uma raça que dá muita despesa, devido a problemas frequentes de pele e ocular. “No dia que chega é lindo, aí ele começa a adoecer e jogam fora. E aí a gente acha o animal com o olho pra fora, a pele ferida. Hoje, o Shih Tzu é o cachorro da moda, e é achado de R$ 100 a R$ 300, enquanto que com pedigree custa R$ 1.200”, disse Betinha. 

Depois de um convênio firmado entre Prefeitura e Hospital Veterinário da UFU desde 2009, cerca de 150 castrações são feitas por mês, mediante encaminhamento do CCZ. As cirurgias são feitas às terças, quartas e quintas-feiras, e o responsável pelo animal precisa ter disponibilidade de ficar no local durante todo o dia. 

Segundo o Hospital Veterinário, já foram castrados cerca de 12.600 animais nos últimos nove anos. De acordo com o CCZ, neste ano, a Prefeitura subvencionou R$ 250 mil para custear os procedimentos. “Os animais que estão aqui e a pessoa tem interesse em adotar, a gente facilita a castração, porque precisa de um pós-operatório”, disse a coordenadora do programa de controle da raiva do Centro de Controle de  Zoonoses (CCZ),  Lilian Vieira de Andrade.

Em junho, foi aprovado na Câmara Municipal um crédito especial de R$ 125 mil para a compra de um castramóvel, veículo adaptado para castração de cães e gatos. Segundo a assessoria da Prefeitura, já foi aberta a licitação para compra da unidade, mas ainda está em andamento. “Mas não adianta só vir o castramóvel. Tem que bancar o serviço e não tem ninguém com experiência na cidade para fazer 60 cirurgias por dia, e é o que precisava”, disse o promotor Breno Lintz.

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