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04/11/2018 às 07h06min - Atualizada em 04/11/2018 às 07h06min

A infância é um desafio diário

Pensar um futuro melhor só é possível dedicando uma atenção especial aos nossos filhos

ADREANA OLIVEIRA
Para Adriane Silvestre, “não tem nada mais triste que uma pessoa não ser vista por sua singularidade” | Foto: Adreana Oliveira
O que será do futuro? As séries de ficção científica invadem nossos dias com suas histórias fantásticas de tempos em que tudo e todos podem ser controlados ao adotarem um comportamento padrão. Mas no presente, na vida real, há uma certeza: ninguém nasce com manual de instruções. O futuro depende de como tratamos nossas crianças. Pais, professores, educadores, cuidadores, todos têm um papel nessa jornada. 

O Diário de Uberlândia conversou com três profissionais da área de Psicologia - Adriane Silvestre, Jorge Pfeifer e Sônia Maria Rodrigues - para falar sobre a importância de uma infância saudável na evolução do ser humano. 

Em seu consultório no Centro, a doutora Adriane Silvestre, natural de Uberaba, radicada em Uberlândia há 20 anos, atende pacientes a partir dos dois anos até a terceira idade. Essa foi uma escolha sua. “Não me vejo compreendendo o idoso se não compreendo toda a passagem de vida. Muita coisa do que vamos avaliar num adulto depende do percurso emocional que ele fez. E eu sou apaixonada nesse trabalho”, afirmou ela que tem 28 anos de profissão, é psico e arteterapeuta, especialista em neuropsicologia, psicologia clínica, educacional e trânsito.

Normalmente as crianças chegam ao seu consultório por indicação dos pediatras, escolas, mas principalmente por pais que foram atendidos por ela. Segundo Adriane, as principais dificuldades dos pais de crianças entre 2 e 4 anos de idade está em saber o que pode ser oferecido para o filho e o que não pode. “Nesse ponto a questão da tecnologia é a que mais pesa. Os pais estão preocupados porque não sabem o que podem oferecer aos filhos”, disse.

Outro ponto, independentemente da faixa etária, está relacionado aos limites. “Eles se perguntam até onde podem permitir alguma coisa ou dizer não”, explicou.
Adriane reafirma que a infância é uma fase crucial para o desenvolvimento da personalidade, e quem atende uma criança tem que saber trabalhar com o adulto, com a família e pessoas que convivem com ela, principalmente no primeiro ano de idade. “Nossa forma de ver a vida é pautada nas nossas vivências, mas a relação entre a pessoa responsável pela criança no primeiro ano de vida reflete no desenvolvimento dela”, disse a profissional.

Com a rotina corrida numa grande parcela das famílias, muitas não têm condições de passar a maior parte dessa fase com as crianças. Por isso é preciso cuidado com a terceirização e estar atento a quem vai confiar a reponsabilidade de ficar com o seu filho nesta fase. “Vale para escolas, babás e até familiares. Nem sempre só por ser parente uma pessoa é preparada ou quer ficar com a criança. É importante a qualidade do sentimento que a pessoa oferece para ela. Por exemplo, há parentes que não gostam de ficar com crianças, ou para quem tudo se resolve de forma bruta ou com castigo, nesse caso, falta o cuidado com o bebê”.

As crianças absorvem muita coisa e segundo a psicóloga, quando alguém tem uma atitude negativa diante dela e acredita que não haverá problemas porque ela não vai se lembrar, está enganado. “Temos a memória emocional e nela tudo, todas essas sensações são arquivadas, a nossa interação, relacionamentos, prazer ou desprazer. Carregamos isso por toda a vida”.

Adriane afirma que os pais precisam ler mais e se informar sobre formas de ajudar seus filhos na infância. Mas, neste caso, precisa ser uma leitura direcionada, não os famosos blocos de notícias enviados via aplicativos de mensagens ou redes sociais. “Admiro pais e mães que têm deixado seus afazeres para acompanhar de perto os filhos em momentos em que eles não estão na escola. Eles procuram se orientar para continuar nessa caminhada evitando problemas futuros porque qualquer sintoma não tratado na infância pode ser colhido na adolescência ou na vida adulta”, disse a profissional, que afirma que o investimento de tempo na infância traz mais qualidade de vida para o filho, para a família e para o futuro.

De acordo com a psicóloga, é preciso compreender o que o seu filho quer te dizer, o que as outras pessoas têm a te dizer. Nos dias atuais se tornou praxe cenas de jovens voltados para as telas do telefone celular e absortos em seus fones de ouvido, sem falar nos modismos. Muitas pessoas chegam aos consultórios assustadas porque viram ou ouviram algo que remetia a alguma atitude do filho e já davam por si um diagnóstico. “E o problema nem sempre era aquele. É preciso sentar, averiguar antes de tomar uma decisão e ter cuidado até no que compartilhar com outros pais. Uma coisa é você estar com pessoas que têm posicionamento sem direcionamentos e podem contribuir com a solução de algum problema, porém há quem só está ali apontando o dedo, direcionando de forma crítica negativa”, disse Adriane.

A especialista diz ainda que a generalização do comportamento infantil deve ser evitada. “Tive situações em que os pais, justamente por seguir outros sem escutar o filho ou ver o que ele demonstrava, tomaram decisões errôneas. Os bons pais percebem diante da atitude dos filhos, do olhar, do toque, da forma como pegam na mão se há alguma coisa errada”.

COMPARAÇÕES

Os pais, muitas vezes sem perceber, pecam pelo excesso de comparações. Querem pautar o comportamento dos filhos de acordo com o que têm visto entre os filhos dos vizinhos, dos amigos, para o bem ou para o mal. “Não tem nada mais triste que uma pessoa não ser vista por sua singularidade. As comparações são ruins mesmo quando feitas entre irmãos. Muitas crianças não têm todo seu potencial desenvolvido porque pais e avós só veem qualidades naquilo que gostariam de ter sido e ignoram o potencial que a criança tem e demonstra de forma diferente. Temos inteligências múltiplas a serem valorizadas. Precisamos olhar sem comparar, gostar da pessoa como ela é”, explicou.

Faz diferença os pais enxergarem os filhos como são, dar suporte, carinho, cuidados e valorizar a criança, isso faz com que ela cresça e descubra uma série de qualidades que nem sabia que possuía. “Enquanto pais precisamos nos conscientizar que cada filho é diferente. Aprender o mundo de cada um deles não é fácil, para isso temos que, primeiramente, compreender o que se passa em nosso mundo interior e aceitar a nossa forma de ser”, disse Adriane.

ATENÇÃO
Pais procuram ajuda mais rápido quando sintoma envolve constrangimento para eles


Desde que se graduou, há 35 anos, a psicóloga Sônia Maria Rodrigues tem trabalhado cada vez mais com a orientação de pais em seu consultório. Especialista em terapia Ericksoniana – que trabalha com transe leve consciente – ela afirma que existe sim, por conta dos pais, uma preocupação grande com a infância dos filhos, mas nem sempre se percebe esforços para saná-la. “Essa preocupação geralmente, e infelizmente, é em função das dificuldades que os pais enfrentam com aquela criança. Se for alguma coisa que os incomoda ou constrange, buscam ajuda mais rápido. Sintomas mais sutis, são passados despercebidos ou deixados para depois”, afirmou.

Por exemplo, uma criança (ou um adolescente) mais triste, quieta, compenetrada, não incomoda tanto, então, esses sintomas são deixados de lado. Já se a criança faz xixi na cama incomoda porque suja, dá trabalho para limpar. Nesse caso o sintoma causa mais constrangimento para os pais, que procuram ajuda. “Isso acontece quando afeta o dia a dia deles como quando a criança chora muito à noite e eles não dormem bem. Mas, se ela roer as unhas ou chorar quietinha pode ficar para depois”, comentou.

Os pais precisam ter sensibilidade. Nem sempre uma dificuldade é resolvida com aquisição de um animal de estimação ou a prática de esporte. Isso não vai na origem do problema, que pode reaparecer mais tarde. “A criança pode parar de chorar à noite ou fazer xixi na cama e começar a fazer outra coisa, ou não vencer bem essa etapa. A angústia, os desafios, as frustrações existem para a criança enfrentar, amadurecer e transpor. Se ela tem algum embate, alguma demora ou qualquer sintoma que faça com que fique mais tempo naquela angústia é uma oportunidade para interagirmos com ela e entender o que está havendo”, disse a psicóloga.

Sônia lembra que há cursos para tudo: tirar carteira de motorista e até culinária para fazer um almoço legal para os amigos no domingo, mas não há cursos para ser pai ou mãe. “Aprendemos com as memórias de como fomos criados, com as experiências das pessoas no entorno, e com as nossas próprias demandas. Um sintoma da criança é resultado do que ela traz de geracional. Acredito que temos uma memória genética. Nossa genética não é só física, corporal”, afirmou.
Cada criança é única. Por isso, gêmeos da mesma placenta reagem de jeitos diferentes ao mesmo meio. “Tem essas diferenças individuais. O remédio que serve para um, a conduta que serve para um não atinge o outro, porque cada um tem suas especificidades”, disse a psicóloga.

Para ela, é papel dos pais procurar mais informações a respeito de cada fase do filho, mas não em clichês ou no que está mais acessível na sala de espera de um consultório. “O Google pode até ajudar com algumas informações como se fosse um band-aid. Só tapa a ferida para os olhos porque entra água, entra sujeira, entra tudo, só os olhos que não veem a cicatriz”.

Quando nasce uma criança, nascem os pais e mais recentemente os avós. “Com essa média de 1,6 filho por casal, muitas vezes o filho único é neto único e os avós trazem as abordagens de como foram criados, mais o que vivenciaram como pais e a experiência de vida. Com os pais trabalhando tanto, temos crianças criadas pelos avós. Em alguns casos a avó é mais sensível para sentimentos, para sensações e para a educação do filho do que os pais que estão aprendendo, mas estão assoberbados com os compromissos deles que não é só trabalho”.

Por outro lado, nem todos os avós estão preocupados em como a criança acordou, como ela dormiu, como ela passa todos os dias e não sabem identificar seus comportamentos.

Para Sônia é importante investir na saúde emocional, psicológica e física, porque quase tudo que acontece no físico tem um componente emocional. “Um bom pediatra vê isso. Uma alergia, uma bronquite, têm muitos componentes emocionais. Há algumas enfermidades que são muito características, como gastrite, de maior fundo emocional”, comentou.

Ela ressalta que muita gente investe determinado valor em uma academia ou no salão de beleza, mas não investiria esse mesmo valor no autoconhecimento. “Tem essa inadaptação para os tempos que vivemos. É muito mais fácil eu falar que o meu filho apresenta algum problema do que eu assumir que eu também preciso me cuidar. Às vezes, a gente até assume, mas não conseguimos vencer as barreiras e vemos as desculpas, como a burocracia do convênio, a falta de dinheiro ou de tempo”.

A psicóloga explica que tem sido objeto de estudos recentes o cuidado ao cuidador. “É preciso cuidar de si para cuidar do outro e quando criamos filhos somos cuidadores. Eu sempre digo aos meus pacientes: você merece isso, vai desfrutar ou não?”.
Sônia explica que a Psicologia sempre olhou muito para a criança, porque para entender o adulto é preciso entender a criança que mora dentro dele e nunca vai embora.

No Brasil, ela considera louvável a atenção dada pelo Ministério da Educação, nos últimos anos, à ampliação dos cursos de mestrado e doutorado nas universidades. “Antes uma porcentagem pequena fazia um mestrado ou um doutorado, que exige de fato pesquisa. O avanço da ciência está relacionado com o foco na educação superior. Se deixamos de ter educação superior, deixamos de ter estudo e nossa ciência definha”, disse.

ALÉM DAS EDIFICAÇÕES

Sônia Rodrigues tem experiência que lhe permite afirmar que cuidar da criança não é só construir creches e escolas, vai além das edificações. Não é só educação básica. “Cuidar da criança é cuidar dos pais, da educação dos profissionais que vão trabalhar com essa criança e com a família. Precisamos dessa ciência para formar os professores e apresentar resultados para a sociedade. Muitas vezes as pessoas se limitam a reivindicar creche e acham que isso é suficiente, mas não é”, disse.

É preciso atenção aos profissionais que estão sendo educados para educar. “Não é só uma questão de diploma. A pessoa faz um curso de Pedagogia à distância em dois anos para passar num concurso e trabalhar numa creche. E quem foi que cuidou desse profissional? Ele trabalhou as questões interiores dele, os medos, as superações, a agressividade dele para trabalhar com a criança?”, questionou.

Para ela, que atende muitos educadores, cuidadores e enfermeiras em Uberlândia, falta suporte a esses profissionais. Muitos deles sofrem com depressão e ansiedade e mesmo assim seguem cuidados dos filhos dos outros. “No caso do que diz respeito ao Município, qual a possibilidade desse profissional cuidar de si? Até para conseguir uma consulta é difícil ou praticamente impossível, muito menos sessões com psicólogos ou psiquiatras. Quando consegue depende de quantas [sessões] o convênio libera, o que geralmente é uma quantidade insuficiente e ineficiente”, revela.

PERDAS E DANOS
Parece clichê, mas é a mais pura verdade: crescer dói


Pode até não parecer, mas ser criança não é tão simples quanto pensa a maioria das pessoas, principalmente aquelas que esquecem que já foram criança um dia. “Todo o começo da vida é infância e ela vai até o momento em que a pessoa começa a se emancipar”, explica o psicólogo Jorge Pfeifer, que tem 40 anos de profissão.

Ele diz que há indícios de que quem quer proporcionar uma infância saudável ao filho, ou teve uma infância saudável ou uma infância muito infeliz, depende da classe social e do meio que a cerca. Em tempos de grandes ofertas de aparatos tecnológicos quem não tem privilégios precisa se esforçar mais para conseguir as coisas, e quem está na classe média vive a almejar estar mais perto da classe nobre. “A classe média é muito infeliz porque compra, compra e nunca basta, a infelicidade da classe média é o desejar sem limites”, comentou.

Pfeifer conta que desde que sai do ambiente de casa e começa a se socializar a criança já vive pequenas e grandes frustrações. “Não tem só papai, mamãe e vovó para no momento da birra dar o remédio, o presente ou o brinquedo. Ela vai começar a interagir com outras crianças da faixa etária dela. Essas crianças vão começar a mostrar o lado ruim das pessoas, tem aquela criança que bate, que morde, que ataca, que não gosta de dividir o espaço com o outro personagem”, relatou.

Pfeifer reforça que a infância está muito ligada a perdas, a não disponibilidade dos pais para dar o que elas querem e a algumas responsabilidades. É o aprender a comportar-se dentro e fora de casa e os acordos que se fazem entre pai e filho. “Esta é a fase da exibição do poder. Primeiro com os pais: eu posso, vou fazer do meu jeito, se eu quiser eu faço. Depois que isso acontece com os colegas começa a competição de outros poderes, é quando eles são respeitados ou rejeitados por um grupo do qual não fazem parte” explicou.

A forma como a criança vai lidar com os outros no ambiente escolar e social depende de como foi educada em casa. Se o pai resolve tudo por ela, um problema na escola terá que ser resolvido por ele. “A criança diz que não gosta da escola porque batem nela, porque não falam ou brincam com ela. Queixa-se para os pais ou para os professores, gestores da escola. Tudo isso faz parte da infância, que é o conhecimento do sujeito, do eu com o mundo, do que posso ou não fazer”, diz.
Quando a criança sai de casa começa a recriar o mundo. Pfeifer dá o exemplo da criança que vai ao shopping e diante das vitrines percebe que não pode ter tudo que quer ou, no caso dos mais privilegiados, pode comprar o que quiser. “Uma criança que não pode ter o brinquedo desejado vai voltar frustrada para casa e tende a desenvolver um comportamento mais servil. A outra pode continuar comprando e chamando o pai para resolver seus problemas, como quando bater o carro ao dirigir sem licença. Após esse momento de acolhimento ou rejeição vem um momento da formação de uma autonomia para se fazer responsável pelos benfeitos e malfeitos dele”.

O adolescente, ao entrar para a faculdade vai começar a se preparar para ser sujeito de verdade, sujeito adulto com profissão, inserido no mercado de trabalho. “Mas isso tudo é projetado. Depende do esforço dele para alcançar, da facilitação do pai e da mãe, aberturas que existem no mundo social e cultural que é precário nesse país. E aí ele faz escolhas e começa a trabalhar ou quebrar a cara para vencer essas novas etapas. Aí se encerra a infância. Ele está prestes a aprender os bons e maus hábitos que a vida apresenta a todos neste mundo moderno”.


Segundo Jorge Pfeifer, “o caráter não se deixa seduzir por qualquer coisa bonita”

FAZÊ-LA IMPORTANTE

Jorge Pfeifer diz que a melhor forma de colaborar com a infância saudável é dar atenção à criança, é fazê-la importante. Conversar com ela após um dia de trabalho e perguntar sobre como foi a escola, incentivá-la a falar sobre seus desafios e medos, perguntar genuinamente interessado. “Se você não pergunta e só repara nela quando tira uma nota zero você está dizendo: aqui você é um merda e lá fora é um merda e meio”, comentou o psicólogo.

“Nós nascemos com uma identidade, nossa personalidade é moldada na infância por vários aprendizados. Uma coisa que tem que ver é a formação do caráter, que é a vivência espiritual do aprender e repetir de uma forma positiva. O caráter não se deixa seduzir por qualquer coisa bonita. A criança precisa saber que o brinquedo é bonito e legal, mas não tê-lo não é o fim do mundo. A criança que tem essa noção faz a distonia do quero, do posso e se isso é importante para ela”, disse.

Para Pfeifer, até os 21 anos aprendemos o bom, o mal, o que é certo e errado. Depois dos 21 a gente pratica ou troca por uma coisa melhor. Hoje, com tantos estímulos, os pais têm que estar inseridos no mundo dos filhos e nas mudanças também. “Assim os filhos não pensam que estão ultrapassados e saberão pedir conselhos, compartilhar ideias, dúvidas. Pais devem ser boas referências. É bom que entendamos que às vezes nos revelamos como maus educadores. Quando é bem feito as pessoas ignoram, quando é mal feito todo mundo sabe e cobra”.
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