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13/11/2017 às 05h41min - Atualizada em 13/11/2017 às 05h41min

Surdos ainda enfrentam dificuldades na educação

Neste ano, pela 1ª vez, Enem teve videoprovas traduzidas para Libras

LAURA FERNANDES | APRIMORAMENTO PROFISSIONAL
Letícia (E) e Raquel (D) são intérpretes de Joiciene (ao centro), primeira surda graduada na UFU / Foto: Milton Santos/UFU

 

A linguagem está diretamente relacionada aos processos comunicativos, que nos permitem interagir com a sociedade e adquirir conhecimento. Onde não há linguagem, não há comunicação, o que impacta diretamente no processo educacional do cidadão. Sem a linguagem adequada, as pessoas surdas esperaram 19 anos desde a primeira edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) até que pudessem fazê-lo em videoprovas traduzidas para a Língua Brasileira de Sinais (Libras), neste ano. O exame, também pela primeira, trouxe, no domingo passado, os surdos como tema de redação.

Para entender os desafios da educação para os surdos, a reportagem do Diário do Comércio de Uberlândia conversou com alguns profissionais desta área que atuam na cidade, a maioria deles surdos e envolvidos neste contexto.

De acordo com os entrevistados, a linguagem é a maior dificuldade educacional para os surdos. Eles contam que a imposição da segunda língua portuguesa e a ausência de profissionais capacitados para atender às necessidades de sua comunicação são fatores de peso no processo educacional e que chegam a afastar esse público da educação.

Os profissionais entrevistados reconhecem os avanços da inclusão dos surdos nos últimos anos e entendem a visibilidade do tema na última semana como um estímulo às discussões e às necessidades dos surdos, embora, de acordo com eles, ainda muitas mudanças precisam ser realizadas.

 

DESAFIO

Lucio Cruz Silveira Amorim é surdo, graduado em Letras com habilitação em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e professor de Libras desde 2011 em Uberlândia. Filho de pais surdos, Silveira conta que no período de sua vida escolar apresentou dificuldades de comunicação. Em casa, ele tinha contato com Libras, mas na escola a língua de sinais não era utilizada pelos professores.

"Não tive intérprete até a sétima série. Depois, me matriculei no Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), onde quase todos os professores são graduados em Libras”, relata Amorim sobre o período inicial de sua educação, realizado na cidade do Rio de Janeiro. Na universidade, o professor conta que a maioria dos professores eram surdos e habilitados em Libras, e nos casos de não serem capacitados, havia intérpretes.

O professor afirma que a presença de surdos na educação é uma forma de incentivo a outras pessoas com deficiência auditiva seguirem o caminho acadêmico e conquistarem diferentes profissões, e ainda acredita que a maior dificuldade no processo de sua educação foi o português, justamente pela falta de um intérprete.

Amorim também é pai do Luciano de Oliveira, de 20 anos, e de Andreia de Oliveira, de 16, e conta que os desafios na educação também foram vivenciados com os filhos, ambos surdos, em Uberlândia. "Eu e minha esposa fomos na Secretaria Municipal de Educação da cidade e lutamos até conseguir colocar intérprete de Libras durante todos os anos", conta ele sobre o atendimento no ensino público da cidade.

O professor acredita que ainda falta conhecimento dos órgãos municipais quanto à educação dos surdos e a acessibilidade em Libras e aponta a escola ou classe bilíngue para surdos como a melhor forma de inclusão social.

Amorim acredita que a partir da repercusão e visibilidade do assunto na prova de Redação do Enem, mais pessoas terão interesse em conhecer mais a Libras, mas que "ainda está faltando muita coisa para a inclusão educacional dos surdos" e que ele continuará lutando pela causa.

 

FORMAÇÃO

Graduada surda relata os desafios da educação para deficientes auditivos

Joiciene Batista Alves é um exemplo de determinação e vitória sobre as dificuldades da educação para os surdos. Ela se graduou em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Uberlânida (UFU), em agosto deste ano, e foi a primeira surda a se formar na instituição.

Natural de Palmeiras de Goiás, mas morando atualmente em Araguari, ela conta que enfrentou algumas dificuldades no seu proceso educacional até iniciar os estudos no ensino superior. Joiciene diz que em toda a sua fase de educação estudou em salas regulares de ensino com alunos ouvintes e apenas a partir da sétima série contou com a presença do profissional intérprete de Libras para interpretar todos os conteúdos em Libras e também mediar a comunicação entre os professores, colegas ouvintes e comunidade escolar.

Letícia de Sousa Leite foi a primeira intérprete de Joiciene. Logo depois, a estudante também passou a contar com o trabalho de Raquel Bernardes. As duas intérpretes a acompanharam até o ensino superior na UFU.

Joiciene conta que antes de ter o acompanhamento das intérpretes, sua mãe e irmã a auxiliavam nos estudos e que ambas aprenderam a língua de sinais para que pudessem se comunicar com ela em sua língua natural, a qual aprendeu na Escola Municipal para Surdos Ozires dos Santos Monteiro, em Araguari.

"Por um tempo, a minha irmã estudava na mesma sala que eu e me auxiliava nas atividades. Depois, ela passou de ano e eu fiquei retida na série anterior", conta Joiciene, que teve dificuldade de comunicação com a professora e os colegas de classe naquele período, mas que também reconhece o esforço de cada um deles para falar com ela. “Imagine você vivendo em um lugar que todos falam uma língua diferente da sua?"

 

PERSPECTIVAS

Joiciene acredita que a surpresa de boa parte dos candidatos com o tema da redação é fruto do desconhecimento dos direitos e até existência das pessoas surdas na educação brasileira. "Eu me senti representada com o tema da redação do Enem e fiquei muito orgulhosa de toda a comunidade surda brasileira que ganhou vez e voz em meio a tantas discussões. Considerando toda a trajetória de exclusão, ainda precisamos avançar muito. Mas é preciso comemorar as vitórias e conquistas para ter fôlego e seguir adiante".

 

ACESSIBILIDADE

Associação dos Surdos e Mudos de Uberlândia atendem a comunidade

Associação dos Surdos e Mudos de Uberlândia (Asul), localizada no bairro Luizote de Freitas, na zona oeste da cidade, é uma entidade não-governamental e tem como objetivo a promoção de elementos primordias à vida social do surdo: educação, mercado de trabalho, esporte e assistência com encaminhamentos jurídicos e médicos dos associados. Na instituição são disponibilizados diversos cursos e oficinas para as pessoas com deficiência auditiva, além do curso gratuito de Libras com capacitação e formação de intérpretes, também disponibilizado para a comunidade geral, por uma taxa mensal no valor médio de R$ 105.

O diretor da Asul, Márcio José da Silva, que também é surdo, afirma que grande parte do público que procura a instituição é de pessoas com dificuldade na comunicação oralizada, que muitas vezes não é alfabetizado na Língua Portuguesa e não compreende a leitura labial.

Silva afirma que a rede de educação municipal não apresenta suporte para atender às necessidades dos surdos e levanta como solução para este desafio, assim como os intérpretes entrevistados, a inserção “de profissionais capacitados para compreender as dificuldades das pessoas com deficiência auditiva”. Para ele, a educação dos surdos apresenta uma “inclusão mascarada”, uma vez que insere o estudante com deficiência auditiva em ensino convencional sem o atendimento especial a que precisa, o que reflete diretamente na evasão escolar e baixa inserção no ensino superior.


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