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09/10/2017 às 17h35min - Atualizada em 09/10/2017 às 17h35min

É preciso preservar o direito à privacidade

Especialista em Inteligência Artificial aponta falhas na legislação para coibir o mau uso das tecnologias

WALACE TORRES | EDITOR
André Ponce foi um dos principais palestrantes do 6º Congresso Brasileiro de Inteligência Computacional / Foto: Walace Torres

 

Em 1956, o professor universitário americano John McCarthy criou o termo Inteligência Artificial para definir a ciência e engenharia de produzir máquinas inteligentes. Seis décadas depois, as máquinas continuam sendo alimentadas por dados que as permitem tomar decisões de forma racional e inteligente. Os meios eletrônicos se tornaram grandes aliados em praticamente todos os segmentos. Até mesmo para detectar um bom candidato a cargo eletivo.

Por outro lado, o uso excessivo de meios eletrônicos e os abusos cometidos nas mídias sociais contrastam com o real sentido dos avanços tecnológicos: a melhoria da qualidade de vida das pessoas. O professor titular do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (USP), campus São Carlos, André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho diz que a legislação brasileira ainda é ultrapassada quando se trata de garantir a privacidade de pessoas que têm seus nomes e suas vidas expostas a partir de dados obtidos em redes sociais. “A gente tem que ter uma preocupação ética na hora de usar e dispor as informações”, disse.

André Ponce é um especialista em Inteligência Artificial, que também é um campo de estudo acadêmico. E foi dentro deste contexto que ele se destacou durante a realização do 6º Congresso Brasileiro de Inteligência Computacional (Bracis) e a 32ª edição do Simpósio Brasileiro de Banco de Dados (SBBD), realizados entre os dias 2 e 5 de outubro em Uberlândia. Promovidos pela Faculdade de Computação da Universidade Federal de Uberlândia (Facom/UFU), e com a presença de palestrantes de renome internacional, essa foi a primeira vez que os dois eventos aconteceram simultaneamente.

Em entrevista ao Diário do Comércio, o professor universitário, que recebeu uma homenagem especial dos organizadores do evento, deixou de lado os termos científicos para explicar como os avanços tecnológicos podem contribuir na melhoria da qualidade de vida, bem como os excessos podem gerar cidadãos mais estressados e introspectivos.

 

Diário - A Inteligência Artificial (IA) tem sido o principal aliado em vários campos de atuação?

André Ponce - Sim, ela é um aliado em diversos campos, na área médica, na engenharia e na área social também. Tem um trabalho muito interessante feito por um promotor de São Paulo que ele usa Inteligência Artificial para detectar quando a sentença judiciária tem vícios de fraude. Tem também outro trabalho feito no Brasil inteiro para identificar a atuação dos parlamentares por IA. Você monitora os parlamentares e vê se eles estão agindo por interesse próprio ou do país.

 

Como isso funciona?

Eles [os sistemas responsáveis pelo monitoramento] pegam as várias leis que os parlamentares fizeram e como votaram e procuram achar algum padrão nisso. Por exemplo: se a maioria das votações dele é contra algum interesse da população, então esse cara não pode ser um bom representante da população. É muito complicado a pessoa ler todas as leis e todas as votações, então [o sistema] procura automatizar isso, buscando um padrão de um bom e um mal deputado.

 

Então através da IA é possível detectar um bom candidato?

Sim, pelo passado dele. Você pode olhar o seu passado e ver o que ele fez. A ideia é que essa ferramenta seja pública para que todo mundo tenha acesso, através de um site na internet que mostre a análise de cada candidato, que as pessoas possam conhecer mais sobre os candidatos, não só as suas promessas, mas saber o que fizeram no passado. O Tribunal de Contas da União está utilizando bastante a IA para detectar fraude em licitações, fraude na construção de prédios públicos, ilegalidade em empresas públicas e até em empresas privadas. Cada vez mais está se espalhando o uso da IA.

 

Hoje o eleitor já tem essa ferramenta à sua disposição?

Essa ferramenta já existe, é um site onde você dá o nome do deputado e ele faz a análise sobre a vida desse candidato. Os dados são de quem já foi político. Não há muitos dados de quem está começando agora na política.

 

A IA já faz parte da vida de todo mundo, seja para o bem ou para mal. As redes sociais são um banco farto de dados. Que cuidados os usuários devem ter?

As pessoas podem usar as redes sociais para direcionar a votação de alguns temas. Nas eleições dos Estados Unidos e na França houve problemas. Em toda tecnologia você pode ter benefícios como pode ter riscos. O Brasil tem que ter o compromisso de alguns regulamentos que tentem punir ou evitar o mau uso da tecnologia. A gente tem que ter uma preocupação ética na hora de usar e dispor as informações. Tem que preservar também o direito à privacidade das pessoas. Tem muita empresa que pega os dados da pessoa e identifica, por exemplo, alguma doença dessa pessoa. Com isso, põe lá em cima o seguro de vida ou o plano de saúde daquela pessoa. Isso tem que ser evitado. Não se pode estimular as pessoas ficarem bisbilhotando as outras para prejudica-las. Outra coisa que se discute muito é a lei do esquecimento. Aquilo que você falou, você pode pedir para que se apague isso? Alguém sempre vai ter uma cópia do que você falou. As pessoas tem que ter o direito à privacidade, para que seus dados não sejam usados para prejudica-la. A nossa legislação é um pouco ultrapassada, lenta. Na Europa o pessoal é mais rápido. Então temos que começar a atualizar a nossa legislação para incorporar essa nova situação.

 

O que exatamente precisaria ser aprimorado na legislação?

Antes disso é necessário aprimorar a educação básica. Porque se a pessoa tem uma boa educação básica, ela consegue saber quais são os seus direitos e consegue identificar melhor os riscos que ela corre. É muito comum, por exemplo, a gente entrar num site e antes de ler alguma coisa tem lá aquele aviso de ‘concordo’. Todo mundo clica só concordando. Teve um experimento nos Estados Unidos onde colocaram um texto dizendo ‘me comprometo a doar meu filho à ciência”. 98% das pessoas concordaram, ou seja, ninguém lê. Portanto, é importante que as pessoas tenham educação para evitar a exploração delas, e possam lutar pelos seus direitos.

 

Falta investimento em políticas públicas de educação?

Falta investimento financeiro, mas falta também planejamento. Como é que a gente pode admitir que em pleno 2017 tem pessoas analfabetas, ou analfabetos funcionais? Como é que ainda não conseguimos pensar numa maneira de motivar as pessoas a continuarem a ir para a escola? De conscientizar da importância que tem a educação? A culpa é nossa também.

 

O homem hoje se tornou muito dependente da tecnologia a ponto de não conseguir passar um dia sequer sem usar um aplicativo?

Não só está dependente como está ficando cada dia mais estressado também, porque ele cada vez tem menos tempo e cada vez tem mais pressão. Isso vai contra toda a ideia de avanço tecnológico, porque o avanço é para melhorar a nossa qualidade de vida, e não para piorar. É muito comum nas minhas aulas ver alunos mexendo nas redes sociais com smartphone. Ou no laboratório também. É quase como se fosse um vício, o cérebro de certa forma está ficando dependente disso. Isso é preocupante porque está mudando as relações humanas. Alguém já falou que as redes sociais deixam as pessoas de perto, mais distantes, e as pessoas distantes, mais perto. A gente não estudou ainda quais são os efeitos disso. Está cada vez mais comum fazer amizades e até casar com pessoas que nunca viram antes e que se conheceram pelas redes sociais. E cada vez menos as pessoas saem para ter contato físico e presencial com outras pessoas. Ou seja, as pessoas estão começando a ficar mais introspectivas, os contatos que elas fazem são tudo por rede social onde não tem que dar a cara, não tem que ser criticado, e não sabemos que tipo de ser humano está sendo formado com tudo isso. Como é que vai ser a sociedade com pessoas que têm vergonha, medo ou preguiça de sair para se expor e conhecer outras pessoas? A gente sabe muito pouco sobre qual será a consequência disso no futuro.

 

A partir de qual idade você recomendaria uma criança a fazer uso frequente de um aplicativo ou um tablet?

O interessante é que a pessoa começasse a usar isso depois que ela desenvolvesse um relacionamento pessoal mais presencial. E quando começar a usar as tecnologias, tem que haver um limite de tempo, não pode ficar o tempo todo ou a semana inteira. É preciso ficar algumas horas do dia sem acesso a esses meios eletrônicos. Até porque no dia que ela não tiver [o acesso], como irá lidar sem esses meios eletrônicos? Por exemplo, quantas crianças fazem conta de cabeça hoje e quantas fazem uso da calculadora? Tudo bem que depois de adulto se use a calculadora, mas acho que tem um papel importante na formação do sistema nervoso no cérebro da criança a fazer os cálculos de cabeça. Isso vai ter uma consequência depois na formação do sistema cognitivo dessa pessoa.

 

O que mais vem por aí sobre Inteligência Artificial que pode agregar em vários setores?

Vamos ter contribuições muito importantes na saúde, com diagnósticos mais precisos e mais cedo. Com isso, se consegue atacar mais rapidamente as doenças, e consegue medicamentos que vão direto no ponto onde podem trazer algum benefício. No caso do diagnóstico de câncer, as pesquisas estão migrando para fazer o prognóstico do tempo de vida das pessoas, com isso consegue definir qual o melhor tratamento.

 

Se antes havia o conto do vigário, hoje os golpes são na esfera virtual. Como fazer para evitar as fraudes tecnológicas?

Tem uma iniciativa internacional interessante de estimular os governos a tomarem decisões baseadas em evidência. Isso acontece na Nova Zelândia, na Inglaterra e começa a espalhar pela África e outros países. Há uma pressão para que os governos consultem mais os cientistas antes de tomarem decisão, para que eles possam dar as sugestões deles baseadas no conhecimento, ou seja, faça a ponte com as universidades. No Brasil, está começando esse envolvimento com a Academia de Ciências para capacitar pessoas que façam a interlocução com o governo, criando essa cultura de ter cientistas que possam fazer a ponte entre o governo e a Academia.


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