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02/09/2018 às 09h22min - Atualizada em 02/09/2018 às 09h22min

Entre a ficção e a realidade

A pedido do Diário, arquiteta portuguesa Margarida Campolargo analisa como o cinema pode ajudar no conceito de Cidades Inteligentes

VINÍCIUS LEMOS
Margarida Campolargo foi um dos destaques durante a edição do Cities 2018 | Foto: Mauro Marques/Divulgação
O ano é 2026, não tão longe de nós, uma megacidade, com seus arranha-ceús e tecnologia avançada, é símbolo da exclusão. Os ricos e planejadores urbanos vivem bem, enquanto a classe trabalhadora se resigna a trabalhar no subterrâneo para alimentar de energia o grande aglomerado urbano. Assim é o ponto de partida de Metrópolis, filme dirigido por Fritz Lang e uma das primeiras visões de uma cidade futurista que o cinema criou, ainda em 1927.

Corta para 2018, e a cidade de Uberlândia recebe o Congresso Internacional de Tecnologia, Inovação, Empreendedorismo e Sustentabilidade, o Cities 2018, no qual uma palestra discute, em linhas gerais, cidades inteligentes – ou smart city, no termo em inglês. A palestrante é a arquiteta portuguesa Margarida Campolargo, que desde 2011 tem trabalhado no planejamento urbano e gestão de projetos com vários trabalhos em Cidades Inteligentes, como o Campus del Diagonal-Besòs, Projeto My Neighbourhood e a Rede de Cidades Inteligentes e Humanas.

O mais completo antagonismo é possível ser traçado entre os temas abordados pela clássica distopia do expressionismo alemão do cinema citada e no que propõe a especialista que visitou o Triângulo Mineiro na última semana. De um lado, a visão artística de uma sociedade tecnológica excludente. Do outro, o olhar real de quem pensa como as cidades devem ser feitas para pessoas e por pessoas, mesmo que conte com o suporte da tecnologia.

Cidades se tornaram verdadeiros personagens durante a história do cinema e esta foi a proposta do Diário para Margarida Campolargo: analisar aspectos de visões cinematográficas com o que de real vem sendo aplicado para a criação das chamadas Cidades Inteligentes.

Metrópolis e arte como inspiração científica

“A arte acaba por influenciar nossa visão de futuro. Há muitos anos um pensador imaginou uma cidade assim e muitas vezes a ciência vai atrás dessa ideia”, disse a palestrante do Cities 2018. E da mesma maneira que no longa-metragem Metrópolis, ela explica que existe um fascínio em pensar um centro urbano inteligente como algo repleto de tecnologia, mas a verdadeira inteligência, segundo ela, é criar uma cidade em que acesso a serviços e à própria inovação tecnológica sejam integrados às necessidades da população. “Eu penso que sim, que é possível (haver cidades não excludentes) e para aí que deve caminhar para cada vez mais integrar toda a população. Queremos tanto a tecnologia que não fazemos uma preparação do cidadão para acompanhar avanços tecnológicos. Aí teremos dois mundos (como em Metrópolis), de haver um fosso muito grande entre a população”.

Blade Runner e o como abraçar cidades multiétnicas

Outra ficção científica clássica, Blade Runner, de 1982, traz entre os elementos mais chamativos o fato de a Los Angeles em 2019 ser um conglomerado absurdo de pessoas e construções faraônicas, ao mesmo tempo que é caótica, suja e tem grande mistura étnica. Salta aos olhos os símbolos culturais orientais como forma de contraste para a cultura americana.

Esse tipo de convivência, muitas vezes dificultada por elementos xenófobos, poderia inviabilizar a construção da cidade inteligente estimulada por Margarida Campolargo, que é aquela em que as pessoas criam um centro urbano humanizado. A Europa, por exemplo, passa há alguns anos pelo problema de recebimento de imigrantes do leste europeu, além da imigração de países africanos. No Brasil, há duas semanas, imigrantes venezuelanos foram expulsos de Roraima, quando parte da população do município de Pacaraima extremou a reação em um local em que a convivência se tornou dificultada devido o recebimento de mais pessoas do que a cidade poderia suportar, sem políticas de acolhimento adequadas.

A arquiteta, por outro lado, explicou que é preciso ter pés no chão e saber que as soluções virão uma depois da outra, somando a análise de informações e como aplicá-las de maneira flexível, para que haja políticas para todos. Mas isso vai além e é preciso rever pré-conceitos e fazer com que o cidadão também passe a agir para melhorar o ambiente. “Eu acredito em uma política do passo a passo. Não acredito que consigamos resolver todos os problemas da cidade. Exige uma coisa que é mais difícil no ser humano que é a mudança de paradigmas. Não acredito que tudo isso seja responsabilidade do Estado e vivemos em um momento em que acreditamos que o Governo tem que resolver tudo. Esta é uma solução que passa pelas empresas e pelo cidadão, pelas ONGs, pelas universidades. É uma responsabilidade partilhada”, disse.

A invasão de privacidade em Minority Report

O personagem de Tom Cruise, acusado de assassinato, tenta fugir na produção Minority Report – A Nova Lei, de 2002. Contudo, na capital norte-americana, Washington, os cidadãos são reconhecidos a todo tempo por meio da leitura de suas retinas em um sistema quase infalível onde quer que estejam, seja nos carros autônomos ou nas lojas de departamentos. O resultado disso é a dificuldade de se esconder ou mesmo o oferecimento de produtos assim que você coloca os pés em um estabelecimento comercial. No último estágio dessa realidade, crimes são previstos antes de acontecerem e as pessoas encontram um jeito de se isolarem por meio da troca de identidade.

Parte desse futuro previsto para a década de 2050 já está entre nós, com cidades cada vez mais monitoradas e dados usados na internet para oferecimento de publicidade específica para aqueles usuários em redes sociais ou numa navegação simples pela internet. Aqui, Margarida lembra que existem duas coisas a serem feitas: regulação e consciência do próprio cidadão do que anda deixando de informação por aí. “Passa muito pela nova regulação para proteção de dados. A Europa, por meio da comissão europeia, lançou uma nova normativa para proteção de dados no continente, que se espera que possa ser inspiração em outros lugares do mundo. Mas passa também de uma conscientização: eu tenho que saber o que coloco nas redes sociais e as repercussões disso. Há alguns anos, houve a criação de uma página que usava o que era editado no perfil público das pessoas, o ladrão poderia saber se a pessoa estava em casa e ele poderia roubar aquela casa”.

A regulação, inclusive, deve cobrar a transparência de gigantes como Facebook, o que, na opinião dela, não existe ainda. Da mesma maneira que os portais de transparência de Municípios, Estado e União devem ser simples de serem consultados por qualquer pessoa. Algo que também não se mostra comum.

Os arquitetos das smart cities e de A Origem

Em 2010, o cinema trouxe pelas mãos de Christopher Nolan o filme A Origem. Um filme de roubo misturado à ficção científica em que uma mente é ludibriada com a construção de mundos para que ideias sejam roubadas enquanto a vítima dorme. No filme, existe a figura do arquiteto, que cria cidades na mente invadida. A certa altura, a personagem de Ellen Page, uma nova arquiteta de sonhos, passeia por uma Paris fictícia criando uma escada sobre um curso d’água e estendendo sua rua para caminhada usando dois espelhos de frente um para o outro e seus reflexos infinitos.

Assim como rapidamente a personagem cria soluções para seus problemas, as cidades são vistas e podem se promover como ecossistemas de inovação, e esta é uma característica de um ambiente inteligente. O fomento de soluções é ambiente fértil para as startups, um dos principais modelos de empresas da atualidade. Mas não se engane, assim como um arquiteto pode chamar a atenção perigosamente para si em A Origem e revelar a cidade fictícia criada em sonho, as startups são esse tipo de profissional criando soluções, mas não são as únicas.

“Eu acho que as startups têm que fazer parte, as universidades também, e o Governo e o cidadão. Eu não acredito em um modelo ditatorial, se um modelo não for co-construído, ele não vai corresponder às necessidades de todos. Ou se aproximar desse ideal. Acredito que tem que haver multidisciplinaridade e, sobretudo, que não interessa colocar várias pessoas de áreas diferentes dentro de uma sala, se elas não conseguirem se comunicar”, afirmou Margarida Campolargo.

A vida de jogo de Scott Pilgrim no mundo real

O jovem baixista Scott Pilgrim, também em 2010, se apaixonou perdidamente por Ramona Flowers no cinema. Só para que esse amor seja realizado, ele vai ter que enfrentar sete ex-namorados malvados da garota. Vitória por vitória, o rapaz ganha moedas, sobe de nível e vai ganhando respeito próprio. Ele tem um objetivo e também incentivos pelo caminho.

A lógica de jogos da vida Scott Pilgrim contra o Mundo, filme de Edgar Wright que adapta quadrinhos de Bryan Lee O'Malley, pode ser colocada em prática na vida real. Claro que ninguém vai colocar o amor da vida dentro de um jogo, mas a chamada gamificação ou ludificação das cidades pode render bons resultados. Tirado de um conceito escrito por Campolargo, esse processo trata-se da criação de processos de estímulo e recompensa tradicionalmente aplicados aos jogos (do inglês "game"), que se espera, levem a transformações comportamentais.

A aplicação, nesse sentido, pode ir de apenas chamar atenção para uma passagem importante que pode organizar o trânsito de pedestres ou mesmo para todo um sistema de separação do lixo, que recompensa com taxas mais baixas ao contribuinte, por exemplo. “Às vezes não precisamos de uma recompensa econômica, como o reconhecimento de o melhor lar do bairro. Uma cidade do Reino Unido tem um bom exemplo: ela tinha muitos problemas com recebimento de impostos. Então foram enviadas cartas que diziam ‘Sabia que na sua cidade X% da população paga os impostos em dia?’. Muito bem, passado um mês foi mandada outra que dizia: ‘Sabia que X% das pessoas no seu bairro não pagam os impostos em dia?’. Depois: ‘Sabia que X% das pessoas da sua rua não pagam os impostos em dia?’. O sentimento é de vergonha e de motivação para que a pessoa vá pagar, porque ninguém sabe qual é a carta que outro está a receber. São processos de jogo, mas que podem ser aplicados em escalas muito maiores do que pensamos”, afirmou a palestrante.

Nem o mundo de Wall-E nem a cidade perfeita

Em 2008 fomos apresentados ao robozinho Wall-E. Ele vive em um mundo tomado pelo lixo e ele parece ser o único de sua espécie a continuar trabalhando. Seu trabalho de compactar lixo transformou o planeta Terra em uma megalópole de torres de cubos de lixo. Ele olha para o espaço, onde os humanos vivem, obesos, em suas cabeiras confortáveis até demais.

Dez anos antes, em 1998, conhecemos a cidade de Pleasantville, no longa-metragem A Vida em Preto e Branco. Naquela cidadezinha, tudo era perfeito e a vida seguia sua rotina até os personagens do mundo real serem transportados para o local fictício de sitcom americana.

Pois, por mais inteligente que seja uma cidade, ela está em algum ponto entre o mundo de Wall-E e de Pleasantville. Nem tanto à utopia, mas sempre no trabalho contra o desastre que as coisas podem tomar curso. “O que nos move é a utopia. Não queremos trabalhar em cidades enormes, mas também com todas as outras. O pior dos municípios consegue dar passos e consegue dar qualidade de vida para seus cidadãos. Recurso humano pode ser potencializado. Uma smart city é aquela que gere seus recursos da melhor forma, sejam ambientais, tecnológicos e humanos”.

Margarida Campolargo acredita que o homem é adaptável, inclusive quando se sente deslocado ou sufocado a tal ponto que o leve à revolta, inclusive contra o excesso de modernidade. “Haverá sempre aquele grupo que veste coisas um bocado estranhas. Esse grupo é o que cria o restaurante sem wi-fi e diz “conversem entre vocês” e que pode crescer no futuro como um tipo de revoltados (com o excesso de tecnologia)”.

Até porque o mundo real deu cor à cidade de Pleasantville, literalmente, ainda que tenha trago um tanto de caos ao ambiente perfeito. Da mesma forma que, quando todo mundo saiu da Terra em Wall-E, mesmo lá no espaço as coisas não deram certo com alienação e dependência de uma consciência tecnológica. Nada é perfeito, nem a mais inteligente das cidades. O que ela exige é consciência, trabalho e que todos sejam abraçados.
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