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19/11/2017 às 08h43min - Atualizada em 19/11/2017 às 08h43min

Sem medidas de controle, 34 mil animais vivem nas ruas da cidade

Número de castração é insuficiente, dizem entidades e protetores

WALACE TORRES | EDITOR
Associação de Proteção Animal (APA) cuida de mais de 500 animais / Foto: Walace Torres

 

A família do designer de interiores André dos Reis Ferreira sempre gostou de animais. Tanto é que nos últimos seis anos passou a adotar cães que viviam nas ruas. Depois que resgatou o primeiro, veio o segundo, o terceiro, o quarto...hoje já são 70 animais no quintal. Os últimos chegaram há menos de um mês. “Deixaram uma caixa com sete filhotes na porta de casa”, conta André, que mesmo tendo instalado câmaras de vigilância para inibir esse tipo de ação, ainda registrou outros três abandonos em sua porta.

Tamanha dedicação com os bichos mudou a rotina de André, que teve de deixar a casa da mãe e se mudar para a chácara da família, onde o barulho não incomoda tanto os vizinhos e o espaço permite dar a devida atenção aos novos e velhos amigos. Com tanto cachorro em casa – e ainda um gato -, a despesa doméstica deu um salto. Somando o gasto com combustível, que aumentou, ração e mais clínicas veterinárias, as contas no fim do mês chegam aos R$ 10 mil. “Eu faço galinhada, almoço, jantar beneficente, rifa, bingo, o que gerar dinheiro para ajudar nas despesas”, diz André, que há duas semanas organizou um mutirão de castração de animais com a ajuda de amigos veterinários vindos de outra cidade.

Pessoas como André Reis travam uma luta diária contra o abandono e maus tratos e a favor de medidas que ajudem a manter o controle de natalidade dos animais domésticos em Uberlândia. Apesar de existirem leis eficientes tanto em nível municipal como estadual e federal que tratam sobre o assunto, o que se percebe na prática é que a proliferação dos animais de rua só se agrava. A própria Associação de Proteção Animal (APA) de Uberlândia até evita divulgar o endereço de sua sede para coibir os abandonos. A entidade hoje está com uma superpopulação de cães e gatos - abriga 530 animais num espaço que deveria acomodar 200. Mesmo assim, a cada semana são deixados entre oito a dez animais na porta da instituição. “Hoje não temos capacidade técnica e nem financeira para receber mais animais”, diz Elson Torres, presidente da associação. 

O artigo 103 do Código Municipal de Saúde (Lei 10.715/2011) é simples e direto: “É vedada a permanência de animais em logradouros públicos.” A exceção vale para aqueles devidamente acompanhados, comprovadamente vacinados e que não oferecem risco à segurança das pessoas. Já o artigo seguinte diz que o animal encontrado solto nos logradouros públicos, sem as condições previstas na lei, “será apreendido e recolhido ao Centro de Controle de Zoonoses.” Esse serviço, no entanto, não existe atualmente. “Na teoria, o código é lindo”, diz André, citando que a norma prevê ainda a castração, o registro e a adoção dos animais capturados.

Entidades como a APA e residências de protetores autônomos como André Reis se tornaram os únicos refúgios para cães e felinos menosprezados. Segundo estimativa da APA, maior e mais antiga entidade protetora desse público animal na cidade, Uberlândia tem hoje em torno de 34 mil cães e gatos que vivem nas ruas. Esse montante representa 5% da população humana – é como se houvesse um animal solto para cada grupo de 20 habitantes. Nem todos os animais que vivem nas ruas são considerados abandonados, uma vez que muitos donos criam seus cães à solta ou os próprios animais conseguem fugir e não são mais encontrados. Mas o simples ato de estarem à solta já é um fator que contribui para aumentar a quantidade de animais de rua

Uma estimativa ainda mais surpreendente está nas residências – são mais de 100 mil cachorros e gatos não castrados, o que dá uma média de 6,8 pessoas para cada animal doméstico. Esse universo também contribui e muito para aumentar a população de animais nas ruas, uma vez que a proliferação é um dos principais motivos de abandono. Uma fêmea é capaz de dar duas ninhadas por ano, sendo que a partir dos 6 meses de vida a cadela já está apta a procriar. A diferença é que um animal criado em casa tem uma vida em torno de 15 anos, enquanto o cão abandonado dura em média quatro anos. O animal domesticado também conta com os cuidados necessários de higiene e controle de zoonoses, ao passo que os abandonados estão mais suscetíveis à doenças, agressões e até maus tratos.

A Lei Estadual 21.970/2016 é outra que ainda não surtiu efeito na prática. A norma trata da proteção, identificação e controle populacional de cães e gatos em Minas Gerais. A nova lei também proíbe a eutanásia de animais para fins de controle populacional, bem como prevê punições em casos de maus-tratos e de abandono. Ainda segundo a norma, é dever do município, com apoio do Estado, disponibilizar processo de identificação de cães e gatos por meio de dispositivo eletrônico subcutâneo. Essas ações poderão ser feitas por meio de parceria com entidades públicas ou privadas.

 

SECRETARIA

O coordenador do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), Adalberto Pajuaba, esclareceu, por meio de nota, que o Município realiza a fiscalização dos animais de rua de forma pontual quando há denúncia de alojamento e alimentação de forma irregular. Além disso, ele informou que o CCZ, em parceria com o Programa Saúde na Escola, realiza trabalho de conscientização sobre a posse responsável e contra os maus-tratos por meio de visita dos Agentes de Controle de Zoonoses nas escolas da rede pública e privada.

Ainda segundo o coordenador, o CCZ desenvolve ações, seja em relação aos cães e gatos ou nos demais animais de relevância em saúde pública, baseadas em legislação competente e subsidiadas por normatizações técnicas, recomendações e manuais técnicos do Ministério da Saúde. Informou ainda que cabe ao Município o desenvolvimento de ações que visem à conscientização da população sobre a posse responsável - que já são desempenhadas pelo CCZ.

Em relação à fiscalização de maus-tratos, a Secretaria de Saúde esclareceu que é de competência do Sistema Nacional de Meio Ambiente e seus órgãos competentes. A Polícia Militar ou Ambiental verificam e registram maus-tratos a animais, trabalhando em parceria.

 

CONVÊNIO

Número de castrações é insuficiente para manter o controle populacional

Os principais meios de controle da população animal são a esterilização e a castração. Um procedimento que custa, no mínimo R$ 300. Em Uberlândia, na esfera pública a castração é oferecida somente por intermédio do Centro de Controle de Zoonoses, que mantém um convênio com o Hospital Veterinário da UFU. Para conseguir uma cota para o animal, o proprietário precisa fazer o cadastro e atender alguns requisitos, como renda e endereço.

A Secretaria Municipal de Saúde informou que até outubro foram realizadas 1.137 castrações. O acesso ao programa é realizado pelo Centro de Controle de Zoonoses de acordo com as vagas disponibilizadas mensalmente pelo Hospital Veterinário. Para realizar a castração de forma gratuita, o proprietário precisa ter uma renda de até três salários mínimos. Ainda de acordo com a secretaria, o programa atende também aos protetores de animais que geralmente castram animais abandonados.

Para os defensores dos animais, esse número de cirurgias é pequeno e insuficiente para coibir o aumento da população que vive nas ruas. “Nasce muito mais animais do que a quantidade que é castrada. Só vai conseguir vencer essa demanda se tiver um programa de castração eficiente, com alto número de cirurgias”, avalia Elson Torres. Ele conta que na APA os animais já em fase adulta – com mais de seis meses de vida – somente são doados depois de passar pela castração. O novo dono também precisa preencher uma ficha e se comprometer com a posse responsável. “Se tem alguém na casa que não gosta de animal, não leva”, afirma Elson. A associação ainda faz visitas para verificar se o animal está sendo bem tratado e com as vacinas em dia. Em caso de alguma omissão ou maus tratos, o animal pode ser pego de volta.

Todos os sábados, das 10h30 às 15h, a APA realiza uma feira de adoção na praça Tubal Vilela. Em cada edição, cerca de 15 animais conseguem um novo lar, a grande maioria de filhotes. Os mais velhos, como o cão Alfredo, o mais antigo morador da APA, já nem é levado mais na tentativa de encontrar um novo dono. Nascido há 17 anos no canil da associação, o vira-latas de semblante tranquilo e olhar solitário, já se acostumou com a companhia de outros cães sem lares e do carinho dos voluntários. Fato é que hoje se apoderou da cama que antes era destinada às horas de descanso do caseiro.

 

RESPONSABILIDADES

Município e UFU são alvo de ação da Procuradoria

O Município e a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) são alvos de uma ação civil pública impetrada pela Procuradoria da República na cidade por causa da situação de abandono e maus-tratos de animais nos campi da instituição de ensino superior. O Ministério Público Federal ainda questiona a falta de políticas públicas voltadas à proteção e controle populacional dos animais, que têm proliferado tanto dentro das instalações acadêmicas como nas vias públicas da cidade. Conforme ressalta o procurador Cleber Eustáquio Neves, que assina a ação, “a responsabilidade, nos últimos anos, tem sido única e exclusivamente de protetores independentes e organizações não governamentais, que já estão atuando além do limite de sua capacidade”.

O procurador pede que seja estabelecido ao Município informar o número da população de animais abandonados, bem como a quantidade de castrações e recolhimentos realizados nos últimos 12 meses; que apresente num prazo de 60 dias um projeto de implementação de canil/gatil para recolhimento desses animais; elaboração de um calendário de esterilização progressivo que atenda no mínimo 200 animais por mês; atendimento médico-veterinário aos animais abandonados e em situação de risco; e ainda que se abstenha de praticar a eutanásia em animais com leishmaniose visceral, salvo quando não houver chance de tratamento. À UFU, é cobrado uma campanha de conscientização nos campi sobre os riscos de disponibilizar alimentos aos animais, bem como orientar sobre a adoção; campanha de castração e vacinação por meio do Hospital Veterinário; e recolhimento a um local apropriado.

O procurador ainda pede a imposição de multa tanto ao Município como à UFU no valor de R$ 1mil por dia de atraso no descumprimento de cada obrigação, além de multa ao Município também por cada animal não recolhido ou que sofrer maus-tratos sob sua responsabilidade.

Em nota, a Universidade Federal de Uberlândia informou que foi notificada e respondeu à ação do Ministério Público Federal que pede providências em relação aos animais abandonados nos campi. A Prefeitura Universitária irá se reunir com representantes da Associação de Proteção Animal (APA), do Centro de Controle de Zoonoses e do Hospital Veterinário nesta semana para analisar a situação.

O Município não se manifestou sobre a ação civil pública.

 

COMODATO

Imóvel destinado a clínica continua desativado

Um imóvel destinado pela Prefeitura à APA em maio de 2016 para a implantação de uma clínica veterinária popular voltada à castração e atendimento de animais está há mais de um ano abandonado. O prédio com 380 m2 fica próximo à avenida Rondon Pacheco, no bairro Santa Maria, e foi cedido em forma de comodato por cinco anos, podendo ser prorrogado por igual período. Segundo Elson Torres, a associação recebeu um ‘presente de grego’. “Nos foi entregue um imóvel em estado deplorável, que abrigava usuários de drogas e moradores de rua. O imóvel não tem um cano, cerâmica, nem porta e nem janela. Roubaram tudo”, diz Elson, frisando que a reforma custaria em torno de R$ 300 mil à associação. “Não temos esse dinheiro para investir num imóvel que não é nosso”.

A associação tenta agora um acordo para devolver o imóvel e conseguir outro em melhores condições. “Pode ser uma casa menor e mais afastada do Centro, mas desde que seja funcional”, diz.

Segundo informações, o Município já teria sinalizado com a disposição de trocar o imóvel por outras instalações em melhor condição. O processo agora está em fase de análise dos imóveis disponíveis.

 

ASSOCIAÇÃO

A Associação de Proteção Animal tem hoje mais de 500 animais, a grande maioria de cães que foram abandonados ou que nasceram no cativeiro. São 56 canis e dois gatis, todos com área coberta e espaço para banho de sol. Cada espaço tem pelo menos cinco cães. A enfermaria está praticamente lotada – hoje tem mais de 60 animais em cuidados especiais. Os animais que chegam com machucados são tratados na própria associação por veterinários.

A APA recebe R$ 8 mil por mês de subvenção municipal e tem um custo mensal que chega a R$ 35 mil. O restante das despesas vem da ajuda de voluntários e de ações como bingo, rifa, venda de camisetas e festival de pizza que acontece uma vez por mês. A solidariedade acaba sendo o principal combustível que mantém a associação funcionando. “No primeiro mês vendemos 400 pizzas”, conta Elson Torres. Todos na diretoria são voluntários. Apenas dois veterinários e quatro tratadores são contratados e cumprem carga horária. 

Eduardo Andrade está no 7º período do curso de Veterinária e de segunda a sábado faz estágio na APA. “É uma bagagem muito boa, aqui a gente acompanha todo o tratamento. A melhor parte é gostar do que faz e ajudar os animais”, diz o estudante.

Vários voluntários levam materiais de limpeza, ração e até brinquedos. Outros doam o tempo disponível dando carinho e atenção aos animais. O auxiliar de lanternagem Silas da Silva vai todos os sábados na associação. Ajuda no banho, no tratamento e na alimentação. “O carinho é o principal de tudo, é o que eles mais precisam. Alimentação, água, não falta. Então é só dar atenção”, diz.


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