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06/03/2017 às 08h40min - Atualizada em 06/03/2017 às 08h40min

Apropriação cultural

Que o mundo anda muito chato, disso pouca gente duvida. A grande questão é a capacidade que o mundo anda tendo para ficar mais chato ainda. Aliás, o mundo não, as pessoas.

 

Dentre as chatices atuais, uma das maiores é a questão da "apropriação cultural". Se você ainda não sabe dessa nova polêmica, vou trazer uma definição da Wikipedia. Sim, não é a melhor fonte sobre o tema, mas vou citar a Wikipedia mesmo e ponto final. Pois bem, segundo a enciclopédia virtual, "apropriação cultural é a adoção de alguns elementos específicos de uma cultura por um grupo cultural diferente. (...) Ela pode incluir a introdução de formas de vestir ou adorno pessoal, música e arte, religião, língua ou comportamento social. Estes elementos, uma vez removidos de seus contextos culturais, podem assumir significados que são significativamente divergentes, ou simplesmente menos sutis do que aqueles que originalmente realizados. (...) Os antropólogos têm estudado o processo de apropriação cultural, ou empréstimo cultural (que inclui arte e urbanismo), como parte da mudança cultural e o contato entre diferentes culturas".

 

Por esse finalzinho, já deu para você perceber que não se trata de uma questão nova, mas de algo estudado há um bom tempo, especialmente pelos antropólogos. O que há de novo é uma apropriação indevida do termo "apropriação cultural" por grupos mais radicais, transformando uma realidade inerente à espécie humana, ao menos desde que esta começou a se deslocar, em um pecado mortal. A discussão ganhou as páginas dos jornais por conta do caso de uma menina branca que estava usando um turbante e foi repreendida por estar praticando a chamada "apropriação cultural". Mas, segundo desabafo da menina de turbante, o uso do objeto foi devido ao fato de estar com câncer e não querer exibir a queda de cabelos. Acho que você leu essa história no começo do mês passado, não? Como se diz hoje em dia, o fato viralizou nas redes sociais em poucas horas.

 

Essa história de "apropriação cultural" me pareceu uma bobagem gigantesca desde o primeiro momento em que tomei conhecimento do assunto. Claro, não me refiro ao estudo sério dos antropólogos sobre o tema, até porque os antropólogos sérios não estão preocupados com a menina branca que usa um objeto oriundo da cultura africana em um metrô de uma cidade da América do Sul. Eu me refiro a essa interpretação radical e distorcida de um fato que somente conduz a mais intolerância contra quem não fez nada de errado. Uma coisa é você criticar uma grande rede europeia de grifes por utilizar em seus desfiles elementos estranhos ao mundo branco ocidental, promovendo uma vulgarização comercial de um símbolo cultural. Outra coisa é você sair pelas ruas acusando branquinho ou neguinho, amarelo ou vermelho, de utilizar um objeto ou veste que veio de uma cultura diferente.

 

Ora, mas todos nós - brasileiros - não viemos de culturas diferentes? Eu sou descendente de libaneses, portugueses e italianos. Ao menos, no mercado oficial, claro. No paralelo, algum ascendente meu pode ter pulado a cerca e colocado mais mistura neste meu sangue. Quem sou eu, se não o mais legítimo dos brasileiros? Para ficar um brasileiro mais puro ainda, só faltou um pouquinho de sangue africano, mas isso acho que todos nós herdamos de nossos ancestrais, pois a África é o continente-mãe de toda a humanidade. O que eu sou proibido de usar, sob pena de apropriação cultural? Não posso comer um sanduíche, pois é um estandarte da culinária branca americana e culinária é cultura no mais puro estado? Não posso tocar um blues em meu violão pois meus ascendentes não foram negros escravos em fazendas do Deep South americano? Não posso tomar saquê por não ter olhos puxados? Devo evitar construir uma casa em estilo enxaimel, como é o meu sonho, por não ter sangue germânico correndo em minhas veias?

 

Para ser sincero, não sei nem até que ponto, mesmo no caso de uma grande rede de moda europeia usar elementos de culturas estranhas, isso seria realmente condenável. O ser humano nasceu para se misturar, para trocar experiências culturais, para passar adiante tudo o que tem de melhor. Se você defende a criação de muros culturais, se você luta para que determinadas maneiras de ser, pensar ou se comportar sejam exclusivas de um grupo, sinto dizer, mas você segue o mesmo caminho da nova safra de governantes radicais e retrógrados que hoje assombra o mundo.

 

Alexandre Henry - Escritor e Juiz Federal

www.dedodeprosa.com 


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