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04/07/2020 às 17h06min - Atualizada em 04/07/2020 às 17h06min

O caso e o contexto

ALEXANDRE HENRY
Uma notícia chamou a minha atenção nesta semana, assim como deve ter chamado a atenção de muita gente. Transcrevo parte do texto da Folha de S. Paulo: “O ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), absolveu, de forma sumária, uma mulher que furtou um pedaço de picanha e outras mercadorias de valor irrelevante no Rio de Janeiro. (...) No mesmo dia, a ministra Rosa Weber negou habeas corpus a um jovem que furtou dois xampus, de R$ 10 cada, de um estabelecimento em SP”.

Em princípio, essa notícia – e talvez tenha sido justamente a intenção da jornalista Mônica Bergamo – demonstraria o quanto a Justiça no Brasil é confusa e profere decisões conflitantes. Como integrante do Poder Judiciário, eu acho que essa afirmação tem fundamento em um grande número de casos em que, de fato, o que se vê é um juiz decidindo da forma A em Uberaba, outro da forma B em Uberlândia e, lá na distante Araguari, um terceiro magistrado decidindo da forma C, todos os três tratando do mesmo assunto. Isso acontece mesmo e com uma frequência, infelizmente, lastimável, pois decisões divergentes põem em cheque a credibilidade da Justiça, já que levam o cidadão a pensar que o seu caso não será resolvido com base em uma boa análise do direito, mas na sorte ou azar da distribuição do processo entre os juízes disponíveis para julgamento.

Só que nem sempre se trata de mera divergência de entendimento entre os juízes. Há casos que, em tese, são praticamente iguais, mas que, com um olhar um pouco mais aprofundado, revelam diferenças que nunca podem ser ignoradas. Vamos pegar os casos que citei há pouco, julgados por ministros do STF, como inspiração para um exemplo.

Antes disso, porém, esclareço um ponto: no âmbito das ciências sociais, é praticamente impossível isolar os componentes de um objeto de estudo. Conversava outro dia sobre o assunto com minha esposa, que está fazendo doutorado e comentou comigo sobre uma obra que trata de metodologia da pesquisa científica. Ela comentava sobre as diferenças entre as ciências sociais (como é o caso do Direito, classificado como ciência social aplicada) e os demais ramos científicos. O autor da obra que ela estava lendo explicava: um físico que estuda a regularidade da queda livre de um corpo pode isolar a ação do ar colocando o objeto em um tubo com vácuo; porém, se um pesquisador estiver estudando a assimilação de um conteúdo por um grupo de alunos, não conseguirá isolar os estudantes das relações com seus pais, já que essas relações podem influenciar diretamente no processo de aprendizagem. Em resumo, nas ciências sociais, o cientista trabalha sempre com o objeto em sua totalidade, sob pena de não ter um resultado científico sólido.

Voltemos para o STF e os julgamentos. Tudo é questão de verificar o valor das mercadorias envolvidas para averiguar se o “ladrão” deverá ser condenado ou não, certo? Não, não é. Não se pode isolar um elemento específico (valor da mercadoria) para decidir se o caso é de condenação ou de absolvição do réu, pois estamos no âmbito de uma ciência social aplicada, não no âmbito de uma ciência exata, como a física ou a matemática.

Quer uma amostra disso? Vamos ao exemplo inspirado nos julgamentos do STF: dois furtos de uma peça de picanha avaliada em R$ 60. No primeiro deles, quem furtou foi Joaquim. Desempregado e sem nunca ter tido ao menos uma passagem pela polícia, ele estava com fome e com filhos para alimentar em casa, os quais não viam um pedaço de carne fazia dois meses. Na entrada da loja de uma grande rede de supermercados, ele viu um carrinho do próprio supermercado com diversas peças de carne chegando do frigorífico para ir para a prateleira. Foi lá, embriagado de fome, pegou a primeira que viu e saiu correndo. No segundo caso, Antônio, empresário rico e já condenado duas vezes por sonegação fiscal, chega ao supermercado com sua Mercedes Benz de último tipo. Na porta do estabelecimento, ele percebe que Fernando, um sujeito humilde que fez um serviço de pintura uma vez em sua casa, está saindo de lá depois de comprar um pacote de arroz e uma peça de carne. Antônio olha aquilo e pensa: “como é que esse “mané” conseguiu comprar essa picanha? Não, isso não é para o bico dele!”. Em uma distração de Fernando, Antônio vai lá e furta a primeira peça de picanha que Fernando conseguiu comprar na vida.

Termino o texto de hoje com uma pergunta: você julgaria os dois casos da mesma forma? Se você disse que não ou, mesmo achando que sim, ainda refletiu sobre como decidiria, certamente entendeu a mensagem que eu quis passar aqui.



Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



 
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