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17/11/2019 às 08h30min - Atualizada em 17/11/2019 às 08h30min

Embarcação

WILLIAM H STUTZ

Teve uma vida maravilhosa, uma família linda e equilibrada. Claro, problemas normais de uma existência sempre apareciam; aconteceram brigas, discussões, caras feias, maus humores. Mas sempre acabava bem, entre lágrimas e sorrisos sempre se amaram. Passou aperto de dinheiro, salário muitas vezes mal chegava ao fim do mês. Dava-se um jeito. Algumas doenças entre entes queridos, chorou a perda de amigos e parentes, passou por tudo que todos passam, pelo muito que a vida nos reserva de bom e de ruim. No seu balancete, muito mais coisas boas do que ruins. Num campeonato de desgraças, caso existisse nunca estaria no G4, sempre, para sua felicidade, pendurado na zona de rebaixamento.

Filhos criados, netos ao redor, realizado profissionalmente. Poucos, mas bons amigos, era feliz. Não praticava nenhuma religião específica, acolhia o que de bom cada uma oferecia. Da umbanda ao judaísmo, passando pelo budismo, lia muito Kardec. Sabia os salmos de cor. Era ouvinte atento da Mishná. Respeitava e reverenciava todas as coisas vivas, a vida em seu entorno era uma eterna contemplação.

Conhecia o canto de cada pássaro, os nomes das árvores, o gosto dos frutos. Pelo vento sabia se ia chover ou fazer frio, lia com fluência os sinais da natureza. Emburrava com a mesma facilidade que retomava o bom humor, era difícil e ao mesmo tempo fácil conviver com ele, apesar da ciclotimidade, era uma pessoa totalmente do bem. Não havia por que temer a morte, para ele uma simples passagem, uma ida à esquina, um natural ir.

Fizera alguns pedidos para quando sua hora chegasse: que seus órgãos fossem doados, que os verdadeiros amigos o “bebessem” em festa e queria ser cremado. Era só tocar no assunto que mudavam o rumo da prosa. Evitavam o certo?

Passou dessa para melhor dormindo, sem um dia sequer de doença ou hospitalização, literalmente morreu como um passarinho, e não foi de estilingada. Seus órgãos doados sem maiores transtornos. Decidiram em relação ao traslado do corpo que seria encaminhado para cidade onde houvesse crematório e de lá suas cinzas seriam recambiadas para sua família, para a cerimônia fúnebre.

Cremado foi, recolhidas as cinzas e aí, caros leitores, começa o verdadeiro martírio. Para trazer as cinzas foi contratada via internet, facilidades cibernéticas oferecidas em lindos sites, uma funerária com o sugestivo nome de “Embarcação” cujo lema era:

— Partiu dessa? Nós embarcamos!

O pote de cerâmica marajoara com as cinzas foi devidamente recolhido no local combinado e, segundo a empresa, seria entregue à família no dia seguinte. Amanheceu, passou o tempo e nada. Preocupados ligaram para a tal Embarcação, onde uma secretária pouco hábil apenas justificou que ocorrera erro de endereço e as cinzas foram parar em outra cidade, longe do destino final, mas que naquele dia mesmo já estariam no caminho certo e que aqui aportariam em segurança. O morto virara encomenda, estava em pé de igualdade com simples lajotas ou caixas de ramonas. Sexta passa e nada. Agora não adiantava ligar, a Embarcação não funciona nos fins de semana.

A segunda aflita custa a chegar e com ela, depois de longo périplo e atraso, enfim, o bom pó ao lar retorna. Viajou mais em cinzas do que em vida. E assim, fez-se o último de seus pedidos. Em festa, um mar de gente, era mais querido do que imaginara, bebeu o morto por sete dias e sete noites.

Da próxima vez, se houver, usarão sedex ou carta registrada, é mais seguro garanto. E ele, descansou em paz.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 

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