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26/12/2019 às 12h00min - Atualizada em 26/12/2019 às 12h00min

Censuras e nostalgia marcam a cena teatral em 2019

Classe artística precisou se reafirmar diante do atual cenário político

ADREANA OLIVEIRA E FOLHAPRESS
Uberlândia foi palco da estreia nacional do musical “ConSerto Para Dois”, com Claudia Raia | Foto: Beto Oliveira/Divulgação
Ganharam força no universo teatral brasileiro, neste 2019, as pautas identitárias e sobre sexualidade. Os artistas estavam mais atentos em relação à representação de negros, travestis, mulheres, índios. Na direção oposta, o governo federal procurou uma forma de desestabilizar trabalhos desta natureza, esvaziando subsídios e criando formas de censura às peças.

Em tempos de ascensão conservadora, os clássicos da dramaturgia ganharam releituras ousadas discutindo temáticas sociais sob ótica dos negros, das mulheres e de transexuais.

Foi o caso de "Gota d'Água ", versão do musical de Chico Buarque e Paulo Pontes, "Black Brecht - E se Brecht Fosse Negro?", "Manifesto Transpofágico", da atriz travesti Renata Carvalho, do musical "Cangaceiras", uma visão feminista sobre o cangaço, ou "Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante" e "Entre", que denunciam a violência contra a mulher.

Também houve uma crescente presença de indígenas no palco, como na versão de Bia Lessa para "Macunaíma", em "Os Um e os Outros", dirigido por Cibele Forjaz, em "Casa Submersa", da Velha Companhia, e em "Brian ou Brenda?", de Yara de Novaes e Carlos Gradim. Na peça "Luis Antonio - Gabriela", da companhia Mungunzá, houve a inclusão de uma atriz transexual.

Com o balaio de pautas incômodas aos conservadores, a censura se manifestou. Até espetáculos com temas sobre regimes autoritários, como o infantil "Abrazo", da companhia Clowns de Shakespeare, foram retirados de programações de espaços ligados ao governo federal, como o Centro Cultural Banco do Brasil, a Funarte e a Caixa Cultural. Esta última chegou a criar um sistema de censura prévia.

Os artistas de teatro reagiram e formaram um movimento, o Artigo 5º, em defesa da liberdade de expressão. Em junho, um dos mais conhecidos diretores da cidade de São Paulo deixou sua carreira para ajudar o governo a dar forma a suas ideias conservadoras. No primeiro semestre, Roberto Alvim assumiu a direção do Núcleo de Artes Cênicas da Funarte, tendo sido este seu primeiro passo em direção à Secretaria Especial da Cultura, a cujo comando ele foi alçado em novembro.

Alvim se dizia admirador do ideólogo do governo, Olavo de Carvalho, e defensor de uma "guerra cultural" contra a esquerda. Nas redes, ele chamou a atriz Fernanda Montenegro de sórdida e mentirosa. A atriz havia posado para a capa da revista Quatro Cinco Um, trajada como uma bruxa prestes a ser queimada em uma fogueira de livros em clara referência aos ataques pontuais de Bolsonaro à cultura.

A entrada de Alvim para a política também significou o fechamento de um importante teatro de São Paulo, o Club Noir, do qual ele e sua mulher, Juliana Galdino, eram sócios.

CORTES
Criadas em abril, novas regras na Lei Rouanet também fizeram diminuir o teto de captação para projetos, de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão, o que atingiu espetáculos musicais –segundo produtores, o corte provocaria uma grande retração no setor.

Também foram afetados festivais e companhias de grande importância do cenário brasileiro, como o Grupo Corpo, a Cia. Deborah Colker e o Grupo Galpão, que neste ano devem perder contratos de patrocínio de um programa da Petrobras.

A política de Bolsonaro e Alvim provocou reações também no cenário político. Alê Youssef, na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, nomeou Hugo Possolo, ator e palhaço, para a direção do Theatro Municipal. E cedeu o espaço para que Fernanda Montenegro comemorasse ali seu aniversário de 90 anos, com o lançamento de sua biografia. Yousseff planeja, para janeiro, uma mostra com peças censuradas.

Houve, ainda no início do ano, a morte de Antunes Filho, um dos diretores mais importantes na história do teatro brasileiro. Longas palmas e gestos efusivos marcaram o seu velório no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, onde ele comandava o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), desde a década de 1980.

Este também foi o ano em que o nos despedimos da atriz e cantora Bibi Ferreira, do diretor Francisco Medeiros, das atrizes Ruth de Souza e Etty Fraser, do cenógrafo e figurinista José de Anchieta e do diretor e produtor americano Hal Prince, entre outros.

NOSTALGIA
Também foi um ano gordo para os nostálgicos. Produções antigas deram as caras. A diretora Monique Gardenberg revisitou "Os Sete Afluentes do Rio Ota", de Robert Lepage, trabalho que fez sucesso há 17 anos, e Zé Henrique de Paula encenou uma versão do filme "Dogville" (2004).

Renato Borghi partiu para sua terceira montagem de "O que Mantém um Homem Vivo?", com textos de Brecht, que já havia apresentado em 1973 e depois em 1982. Bia Lessa fez sua versão de "Macunaíma", que havia ficado marcada pela adaptação de Antunes Filho no fim dos anos 1970.

Pedro Cardoso e sua mulher, Graziella Moretto, resgataram sete peças de seu repertório.

Ainda que conturbado, 2019 trouxe espetáculos bastante elogiados. Foi o caso de uma montagem de "Mãe Coragem", de Bertolt Brecht, idealizada e protagonizada por Bete Coelho e dirigida por Daniela Thomas, que pôs seu elenco sobre um extenso chão fofo de terra preta. E de "As Comadres", que a francesa Ariane Mnouchkine, diretora do célebre Théâtre du Soleil, encenou com elenco brasileiro.
 
CENA LOCAL
O cenário em Uberlândia não foi tão diferente. No último domingo, o Diário de Uberlândia repercutiu o balanço positivo do Circuito Independente do Teatro de Uberlândia (Citu), em sua primeira edição. O Uberlândia na Rota do Teatro, voltado para grandes espetáculos do circuito nacional, foi outro projeto que se destacou por aqui, mesmo com tentativas de boicote instigadas pelo momento político atual.

Segundo Carlos Guimarães Coelho, idealizador do projeto, o mesmo terminou 2018 de modo tenso em decorrência do conservantismo uberlandense. A atriz Denise Fraga foi alvo de campanha de boicote, quando veio à cidade, em novembro, com a peça “A Visita da Velha Senhora”. Apesar de as eleições já terem acontecido, os eleitores do candidato eleito emplacaram uma campanha de boicote ao espetáculo, apenas por ela ter se declarado publicamente adepta da campanha “Ele Não”.

“Antes dela, em outubro, veio a peça ‘Moliére’, com Matheus Natchergaele, Renato Borghi e grande elenco, em meio ao pleito do primeiro turno, quando uma turma de eleitores invadiu o pátio do teatro para seguir dali a apuração dos votos, sem alvará para a realização do evento, e o espetáculo quase teve de ser cancelado, pois eles se recusavam a sair”.

Diante da acenada perspectiva de continuidade de uma luta contra a cultura e os artistas pelas alas mais conservadoras da sociedade, a organização do Uberlândia na Rota do Teatro abriu 2019 com uma artista que pudesse “desarmar” essas pessoas. A escolha foi por Regina Duarte, confessa admiradora do candidato eleito, com a peça “Volta ao Lar”.

Logo em seguida, veio a premiada remontagem de um musical icônico nas artes cênicas brasileiras, “Gota d´água [a seco]”, de autoria de Chico Buarque e Paulo Pontes, com Laila Garin e Alejandro Claveaux; depois Diogo Vilela e elenco, com a peça “A Verdade”, em seguida o musical Malala, sobre a garota paquistanesa que lutou pelos direitos das mulheres à educação. Vieram ainda “O Mistério de Irma Vap”, com Mateus Solano e Luiz Miranda, remontagem festejada e premiada nacionalmente.

GAL
Coelho conta que a produção local do show “A Pele do Futuro”, de Gal Costa, sofreu semanas antes da chegada do espetáculo à cidade por conta de manifestações do público em um festival que Gal encerraria em Bonito (MS). “Pessoas de Uberlândia pegaram apenas o protesto ocorrido na plateia do último show e o divulgaram como se fosse algo isolado e acontecido por iniciativa e indução da cantora. Chegou-se a formar um grupo em um aplicativo de troca de mensagens para ‘derrubar’ o show e existiu a ameaça de receber a artistas com ovos no aeroporto”.

Após esse episódio, veio algo inédito e histórico para a cidade: a estreia nacional de um grande espetáculo. Claudia Raia e o marido Jarbas Homem de Mello escolheram Uberlândia entre uma extensa lista que incluía capitais e estrearam aqui o novo musical da dupla, “ConSerto para Dois”.

Semanas antes, vários veículos da mídia nacional mencionaram a estreia. Para os produtores locais, a prefeitura de Uberlândia perdeu a oportunidade de ver essa escolha como vitrine de uma notícia positiva para a cidade e não “abraçou” o evento como era esperado.

O programa Uberlândia na Rota do Teatro finalizou o ano com uma comédia sobre os tempos high tech que vivemos. “Simples Assim”, com Julia Lemmertz e elenco, trouxe um texto leve e divertido que exortava as pessoas a serem menos tecnológicas e mais presenciais em suas vidas.

Para Carlos Guimarães Coelho, foi um ano de muita luta. “Lutar é uma premissa para quem trabalha na área. A gente sabe que cada produção é uma batalha. Mas, nesse sentido, 2019 foi um ano atípico. Alguns momentos pareceram um campo de guerra. Um ano muito difícil. Mas, conseguimos driblar as adversidades e o balanço final foi positivo”.

Coelho comenta ainda que as sessões impactaram quase 20 mil pessoas e Uberlândia. “Isso sem mencionar os espetáculos da cidade que foram intensos e em grande número neste ano, tanto dentro do Citu quanto fora dele. Mas, é frustrante você se deparar com lutas que não precisavam existir. Há muita insanidade nesse contexto. A arte, de um modo geral, é apartidária”.























 

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