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23/03/2019 às 18h00min - Atualizada em 23/03/2019 às 18h00min

Base do Brasil na Antártida ficará pronta no fim do mês

Ainda levará um ano para local receber cientistas, que temem falta de verbas

FOLHAPRESS
Sete anos depois de ter sido destruída por um incêndio, a base para pesquisas científicas na Antártida deve ter a reconstrução concluída no final deste mês, mas ainda levará um ano para ser ocupada por pesquisadores.

Com 4.500 metros quadrados construídos por cerca de R$ 100 milhões, a Estação Antártica Comandante Ferraz ainda precisará testar os sistemas no limite das condições de uso e segurança.

Cada disjuntor dos 200 quadros de luz precisará ser verificado, por exemplo, e os quatro geradores serão exigidos ao máximo, em diversas manobras, para garantir que a estação não fique sem energia nem por um dia.

Só depois seus 17 laboratórios começarão a ser ocupados. A inauguração oficial está marcada para o começo de 2020, um atraso de dois anos em relação à data prevista, mas cientistas acreditam que só em 2021 a estação esteja em condições adequadas de uso.

A demora, porém, não é o que mais afeta a pesquisa brasileira no continente, na avaliação do principal glaciologista (especialista em geleiras) do país, o professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Jefferson Cardia Simões.

"A estação é a casa do Brasil na Antártida, a manifestação de interesse político. Mas, cada vez mais, a ciência não é feita na estação, e, sim, em acampamentos temporários, nos navios, ou com o uso de robótica", afirma.

Segundo Simões, não mais que 30% das pesquisas usavam a estação antes do incêndio em 2012, e mesmo essas não pararam. O pesquisador da UFRGS lidera um dos 17 projetos aprovados no final de 2018 em chamada pública do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) –veja quadro nesta página.

Mais do que a ausência de base física, o problema é a instabilidade de financiamento, na opinião não só dos próprios cientistas mas de membros da Marinha (que administra a logística e a estrutura física) e de pesquisadores que estudam o Programa Antártico Brasileiro (Proantar, principal instrumento de execução da política antártica nacional), como o pesquisador do Ipea Israel de Oliveira Andrade.

Estudo coordenado por ele mostra que a fatia destinada à ciência oscilou bastante nos últimos anos (veja quadro).

O professor da UnB Paulo Câmara, por exemplo, passou os últimos cinco anos na Antártida identificando os caminhos e meios pelos quais musgos e líquens do polo Norte chegam ao polo Sul, entre outros aspectos.

A pesquisa foi realizada em estações da Espanha, da Coreia e do Chile e em acampamentos. Mas o financiamento, que deveria ter sido pago em três anos, atrasou, e a última parcela do foi paga só no fim do quarto ano.

"Precisei dispensar dois pesquisadores com pós-doutorado, que já trabalharam na Antártida, conhecem a logística e a ciência, publicam trabalhos, porque a bolsa acabou. O que eles farão agora? Vão vender pipoca? Mate gelado na praia?", diz Câmara.

A falta de recursos estáveis faz com que profissionais formados durante dez anos em universidades públicas acabem tendo que se empregar no setor privado: "Já que é a ciência que mantém o Brasil com poder de decisão na Antártida, é preciso assegurar investimentos", afirma Câmara.

Esse poder de decisão vem do fato de que só países com atividade científica podem ter voz e voto no Tratado da Antártica, que regula as atividades no continente.

"São apenas 29 os países que decidem os destinos da Antártida, que é 10% do território do planeta, com 70% da água doce do mundo e imensas reservas intocadas de gás, minérios, petróleo", diz Câmara.

"Mais do que voto, a palavra-chave talvez seja veto", afirma o contra-almirante Sergio Guida, responsável pela etapa final da reconstrução. Segundo ele, é interesse estratégico nacional manter as normas atuais, que impedem a exploração comercial do continente.

Visão estratégica é a principal mudança na ciência brasileira na Antártida desde o incêndio da base, diz Simões.

"O país tem um planejamento de longo prazo, com dois focos: investigar questões pertinentes ao ambiente e à sociedade brasileira, com a melhor qualidade possível para reforçar o protagonismo brasileiro nos fóruns internacionais."

Mas a questão do financiamento não está resolvida, mesmo que o edital do ano passado tenha garantido R$ 18 milhões pelos próximos três anos. "A verba foi a tábua de salvação da ciência antártica brasileira, mas daqui a quatro anos ninguém sabe o que vai acontecer", diz ele.

O investimento foi liberado ainda durante o governo de Michel Temer, mas não há mudanças de diretrizes na gestão Bolsonaro, segundo a responsável pela área no Ministério da Ciência e Tecnologia, Andréa da Cruz-Kaled.

"A prioridade agora é construir os laboratórios em conjunto com a comunidade científica, atendendo suas demandas e propostas", afirma a coordenadora de Oceanos, Antártica e Geociências.

Vários dos projetos aprovados nesse novo ciclo estudam o impacto da Antártida no clima brasileiro: correntes e fluxos meteorológicos do continente afetam o regime de chuvas e a temperatura do Brasil.

"Já ouvi de um deputado da bancada ruralista que não se interessava pela pesquisa antártica, apenas pelo seu próprio setor. Mas só chove na terra dele por causa da Antártida", afirma Guida.

Outro campo com potencial tecnológico e comercial é o de substâncias como anticongelantes e protetores solares produzidos por organismos que vivem nas condições extremas do continente.

A partir de outubro, por exemplo, devem chegar à Antártida cinco pesquisadores da Fiocruz, para estudar micro-organismos e vírus.
O objetivo é investigar tanto o risco que eles podem representar quanto o potencial de produzir substâncias úteis, diz Win Degrave, coordenador da equipe da fundação, que pela primeira vez participa com projeto próprio.

Moléculas que ajudem no tratamento do câncer, por exemplo, é um dos focos: "Organismos que conseguem sobreviver no gelo são importantes, porque têm atividade enzimática relevante".

A equipe terá mais de 20 pesquisadores de 12 áreas diferentes, como bioquímica, genômica, taxonomia e bioprospecção –a área que investiga que moléculas têm potencial de se transformar em medicamentos, por exemplo.

A própria reconstrução da estação gerou conhecimento científico, diz Guida. "Erguer um edifício sobre solo congelado, com rochas a 70 metros de profundidade, exigiu soluções inovadoras, como placas de metal e de concreto formando uma estrutura que praticamente flutua sobre o solo", diz ele.

No processo, o Brasil fez parceria com universidades chinesas para desenvolver tecnologias de construção nesse tipo de solo. Um dos laboratórios será patrocinado pela China, e haverá intercâmbio com técnicos da Marinha.

O projeto também superou desafios como o de prever uma estrutura aerodinâmica capaz de suportar ventos que chegam a 200 km/h, diz o arquiteto Emerson Vidigal, do escritório Estúdio 41, vencedor do concurso para conceber a nova estação.

Por causa do incêndio que deixou dois mortos em 2012, segurança foi uma das principais preocupações. Foram dobradas as recomendações técnicas que se referem a evacuação e combate a incêndios.
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