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28/01/2019 às 07h53min - Atualizada em 28/01/2019 às 07h53min

Em um relacionamento sério...com os cabelos

O modo como lidamos com ele reflete a forma como lidamos com nossas ideias

ADREANA OLIVEIRA
Processo de independência de Ana Laura Brandão passa pelos cabelos | Foto: Patrick Garzez/Divulgação
A rotina da maioria das pessoas não favorece a reflexão. Você dorme pensando nas tarefas do dia seguinte e acorda pensando no que não vai conseguir fazer. Mas algo que não sai do radar: aquela olhada no espelho e uma ajeitada nos cabelos. Você pode até pensar: “que bobagem”, mas a reportagem do Diário de Uberlândia apurou nos últimos dias que nossa relação com os cabelos é mais profunda do que percebemos.

A estudante Ana Luiza Brandão percebeu cedo, por volta dos sete anos, que seus cabelos eram uma extensão de sua personalidade. Ela se recorda de, até os nove anos, usar o cabelo em corte Chanel, o que lhe rendeu comparações à personagem Catarina, de Adriana Esteves, na novela “O Cravo e a Rosa” (Globo, 2000). “Eu era bravinha, como ela, e as pessoas comentavam. Percebi que meu cabelo poderia me diferenciar das outras pessoas”.

Aos 26 anos, Ana Luiza, ao olhar para trás, percebe que seu processo de independência passa pelos fios que ficam entre o encaracolado e o liso. “Até os nove anos era função da minha mãe decidir sobre meus cabelos. A partir dos 11 ficou por minha conta. Deixei crescer até chegar na cintura, depois passei a escolher os cortes. Tive o mesmo cabeleireiro até 2018, quando ele faleceu”, contou.

Ana Luiza teve problemas de saúde como depressão e ansiedade e percebeu que seus cabelos expressavam exatamente seu espírito. “Olho as fotos e percebo naquelas em que estou com cabelo preso todo o mau humor. Durante o tratamento fiquei dois anos e meio sem fazer nada neles. Cortei curto e deixei o tempo agir”, disse.

No ano passado, a estudante foi convidada a participar de uma ação que propunha uma mudança. “Me deu medo. Veio a dúvida se estava preparada para ser loira; meu tom natural é o castanho médio. E depois de passar a vida toda com o mesmo cabeleireiro, encontrar outro profissional que o substituísse foi sorte. O Márcio Machado conversou comigo, entendeu a minha personalidade e a transpôs para os meus cabelos. Um toque rosa fez toda a diferença porque ele percebeu que só o loiro mais básico não condizia com minha atitude”, disse.

Hoje ela se vê com mais maturidade para cuidar dos fios loiros, que dão muito trabalho. “Usar cores mais fortes é mais fácil. Já acordei decidida que queria o cabelo azul, e fazia. Para muita gente pode parecer banal, mas pra mim o relacionamento com os cabelos é algo sério, pode expressar algo sobre mim que não teria como colocar em palavras”, finalizou.
 
“A CULPA É DO CABELO”
Preconceito dentro de casa leva mineira a produzir documentário


Juliana Maltos (à frente) e seus entrevistados para o documentário | Foto: Divulgação

Há alguns anos a artista e doula mineira Juliana Maltos, natural de Araguari (MG), radicada em Natal (RN) resolveu colocar tranças afro. Levou um susto ao ser criticada pela própria avó, que chegou a pedir que ela as retirasse. “Nunca poderia prever isso. Venho de uma família negra miscigenada, que tem índios e brancos e tenho a pele que chamam de morena.Parte da minha família não me identificava como negra”, contou. Juliana afirma que as tranças naquele momento deram a ela a identidade negra. Foi quando percebeu o poder do cabelo. “Me senti negra e senti que as pessoas me enxergavam assim”, recorda.

No dia em que colocou as tranças ela, na época aluna do curso de teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde se graduou, sentiu o preconceito na sociedade. “Estava no ônibus e me sentei ao lado de outra garota. Ela se levantou e começou a me olhar com um ar de estranhamento. Nesse momento vi que era preciso falar sobre isso, comunicar às pessoas que o cabelo tem um status social”, explicou.

Ao comentar o assunto em alguns meios de militância percebeu que fazia sentido. E a partir daí começou a colher os depoimentos para o documentário “A culpa é do cabelo” (2014), disponível no YouTube. Um dos depoimentos surpreendeu Juliana. Aline costumava alisar os cabelos, mais por pressão para se enquadrar, ser aceita pela sociedade, do que por vontade própria. “Depois que ela assumiu seu black começou a se gostar. Percebemos como a sociedade, a moda e o que é dito aceitável inibe a pessoa de ser quem ela é ou a distancia daquilo. O embranquecimento cultural faz a gente acreditar que tem que ser igual a referência de homens e mulheres europeus, um reflexo da nossa colonização”, comentou.

Mãe de Iúna, de 2 anos e 5 meses, Juliana atua em causas sociais e pratica capoeira. Para ela, o recado é claro quando alguém quer interferir na forma como outra pessoa usa o cabelo. “É enquadramento, querer que todos sejam iguais, como é de costume em uma sociedade materialista e patriarcal. Há cinco anos meu cabelo é rastafári e vejo nele uma extensão do meu corpo. Rastafári é uma religião, não é estética. Ainda sofro preconceito. Já perguntaram se eu não teria mais clientes com outro tipo de cabelo, mas já rompi barreiras e muitas pessoas já me enxergam pelo que sou e não pelo que estou e me sinto bonita, me gosto assim”.
Para Juliana, a apropriação cultural, que tem levantado debates, é um assunto delicado. “Essa apropriação pra mim é quando vem alguém de fora e suga algo de nós com o que não tem identificação e sem significado nenhum para ela, não conhece a história por trás da roupa, do acessório de um povo. Usa porque acha bonito. Isso faz com que esse povo se sinta ofendido e roubado mais uma vez, como reflexo da nossa história”.

NATURAL
Aceitar-se é uma das principais dificuldades da sociedade pré-digital


A médica psiquiatra Salma Amancio Abdulmassih fala sobre o imediatismo | Foto: Adreana Oliveira

Quando criança, a médica psiquiatra Salma Amancio Abdulmassih se encantava com pessoas de cabelos brancos. “Perguntava o que  elas passavam por que queria igual”. A menina cresceu, evoluiu e já exibe belos cabelos brancos. “Pouca gente assume os cabelos grisalhos. Minha mãe reclamava que não tinha idade para ter filha com cabelos brancos e algumas pessoas perguntam por que prefiro assim. Eu gosto”, contou ela em entrevista ao Diário de Uberlândia em sua casa .
A relação das pessoas com os cabelos, para a psiquiatra, reflete a relação delas com a sociedade na qual estão inseridas. Ela explica que tudo tem seu tempo. “Se você corta os cabelos é preciso tempo para que cresçam, se não gostou do corte a mesma coisa. Mas essa sociedade aguenta esperar alguma coisa? É mais fácil fazer um implante. Estamos vivendo em uma sociedade que chamo pré-digital, é um momento de transição para o digital, que ainda é um mistério. E todo mistério dá medo”, explicou.

Salma explica que essa pressa vem do imediatismo provocado pela ansiedade, que dificulta a percepção, raciocínio e julgamento (ou escolha). “Tinta é tinta, a cor é a que está na embalagem, porém, cada pessoa vai obter um tom. Mas quem disse que você precisa pintar os cabelos, seguir a moda? A indústria vive da venda de produtos e da prestação de serviço. Cabe a cada um encontrar um meio termo porque tende-se a lidar com os cabelos da mesma forma que lida-se com as ideias”, disse ela, recordando da representatividade dos moicanos coloridos dos punks londrinos no final dos anos 70, do heavy metal dos anos 80 com os homens usando cabelos mais compridos. “A juventude é o período em que ousamos mais, porque queremos nos destacar. Com a vida em sociedade, muitos mudam para se encaixar ao meio corporativo, acadêmico ou religioso, ficando assim, mais invisível”.

Salma lembra que os cabelos não definiam gêneros. Homens e mulheres tinham cabelos compridos na Idade Média. “Nessa época uma mulher poderia ser punida sobre uma variada sorte de acusações com os cabelos raspados em praça pública. Por que será?”, questiona.

Salma diz que o aspecto financeiro envolve as mudanças numa sociedade que valoriza o status e a aparência e há dificuldade em aceitar a passagem do tempo. “O problema não são os cabelos brancos, é o envelhecimento, tem gente que prefere camuflar”, afirmou. Ela afiram que a extravagância atribuída por grandes grupos a um sub-grupo é aceita em determinadas situações, dependendo do status financeiro e de fama da pessoa e está ligada à independência dela. “Veja, por exemplo, o que Chacrinha e Elke Maravilha conseguiram. Todos nós desejamos existir e queremos ser respeitados por nossa individualidade e ter uma identidade grupal aceita pela maioria e é isso que essa sociedade ainda não entende”.
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