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04/07/2020 às 17h03min - Atualizada em 04/07/2020 às 17h03min

Quando os filhos não chegam

IARA BERNARDES
Relutei muito para escrever esse texto, pois mexe com sentimentos de pessoas que amo, no entanto, semana passada estava a correr o feed do Facebook e um vídeo chamou minha atenção. Nele, um casal explicava a razão de não ter filhos. A esposa, emotiva começou a falar sobre o tópico e por mais que ela tentasse se conter, a dor que o assunto provoca é impossível não se comover. Dentre muito do que foi falado, uma frase que me chamou a atenção foi algo parecido com: não sei o porquê de não termos filhos, já fizemos todos os exames, todos os tratamentos, mas os filhos simplesmente não chegam. Em seguida, os dois começaram a discorrer sobre os questionamentos que lhes são feitos acerca da situação: “vocês já fizeram tal exame? Porque a minha sobrinha ... “; “vocês já tentaram transar na posição X?” - sei lá se isso faz diferença -; “vocês fazem sexo?”. A cada questionamento exposto ficava mais embasbacada com a falta de delicadeza dirigida a eles.

Poucos minutos após começar o vídeo, já estava me perguntando quantas vezes fui a pessoa inconveniente por trás das perguntas, então me lembrei de um episódio em que fiquei verdadeiramente envergonhada por semanas após o ocorrido. Estava eu, numa consulta, constrangida com aquele silêncio próprio de alguns profissionais da saúde, entre a avaliação dos exames e uma pergunta pontual sobre a quantidade de filhos e quantas gestações, reinicia o silêncio quebrado pelo farfalhar de tantos laudos e ressonâncias. Eu ali meio nervosa, querendo descontrair, quebrar “o gelo”, aproveito a deixa do tópico filhos, vejo uma aliança gigante no anelar esquerdo e solto: você tem filhos? A resposta seca, sem nem direcionar a mim o olhar veio com um sonoro “Não”. Podia ter parado por ali mesmo, mas eu e minha boca grande não se controlam: “Você é casado há muito tempo?”, mais uma vez a resposta curta: “7 anos.”. “Tem vontade de ter?”, pergunto. “Já tivemos mais.”, vem a resposta sem contato visual. “Vocês não gostam de criança?”. “Sim, gostamos”. Nesse momento acredito que o rapaz já estava meio bravo comigo, porém, quando fico nervosa, não consigo parar de falar e continuo a disparar: “Nossa! Então precisam providenciar logo hein! Ter filho é a coisa mais maravilhosa do mundo. Tenho 3 e blá blá blá. Inicio um monólogo sem chance de respostas, discorrendo sobre como minha vida foi transformada com a maternidade.

Tempos depois, numa conversa com a pessoa que me indicou o profissional, descobri que a esposa não conseguia engravidar e era o grande sonho do casal, além disso,  já tinham tentado muitos caminhos, mas tudo fora em vão.

A partir daquele momento me senti tão constrangida pela invasão e pela dor que pude causar, mesmo sem saber, e percebi que deveria ter me calado logo no início do inquérito familiar a que submeti o pobre moço.

Nesse mesmo vídeo, o casal relata que várias pessoas, além de questionarem a infertilidade, logo apresentam soluções mágicas e a principal delas é a adoção, e o que acontece com a minha memória? Ela vem me mostrar que eu já fui a pessoa das soluções também e, novamente, a vergonha toma conta da minha consciência, afinal a frase “se não der certo, vocês adotam”, já saiu rápido da minha boca. Arrependida instantaneamente, e por ter muita liberdade com o casal, prontamente me desculpei e disse que não sou capaz de sentir a dor deles, afinal, são muitos filhos por aqui, então não sei o que passa pela mente e coração de quem sonha com os filhos, mas não os pode ter.

Entretanto, apesar de não saber o que é isso, sei que todos podemos ser gentis e empáticos, entender que não temos absolutamente nada a ver com a falta de filhos alheio e que tem algumas dores que nunca devemos mexer.  E tem mais, antes de já darmos as receitas que acreditamos valer para todos, é necessário compreender que em alguns momentos o casal está tão desgastado emocionalmente que fazer isso serve apenas para incorporar mais um sofrimento. Quando seguimos com comentários como: “Uma amiga não conseguia engravidar, adotou e logo engravidou”,  você mercenariza o processo de adoção, é como se já que a pessoa não consegue manufaturar, vai no mercado e compra um filho, na expectativa de que assim a gestação aconteça. As coisas não são assim, as dores e batalhas diárias não têm receitas prontas, nem os sonhos irrealizáveis, porque algumas pessoas não podem ter filhos biológicos, mesmo que sonhem muito. Da mesma maneira que outras pessoas não podem enxergar, andar, falar, fazer contas matemáticas complexas ou andar de bicicleta.

No fim das contas, o que precisamos mesmo, em qualquer situação, é nos colocar apenas como meros observadores, se é que isso nos cabe, e não forçar aberturas a conversas e comentários que não diz respeito às nossas vidas, é ter a empatia para saber interromper um assunto que machuca alguém e a perceber que o outro é o outro e nem sempre as nossas experiências são válidas para todos.



Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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