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08/05/2020 às 11h07min - Atualizada em 08/05/2020 às 11h07min

Belo Horizonte

WILLIAM H. STUTZ
E eu que prometi nem mencionar pandemia, coronavírus, distanciamento social e tantas outras palavras que lembrariam tamanha tragédia que se abateu sobre a nave mãe, nossa morada, planeta Terra. Mas tem jeito?

Todo lado que se olha te faz lembrar clausura, prisão domiciliar voluntária e cidadã. Tem que ficar em casa sim senhor, sim senhora. Sabe-se Deus até quando, mas é o recomendado. Nas raras saídas só vejo olhos de todas as cores e formatos, com óculos, com lentes com lágrimas, sorrindo. Se os olhos são as janelas da alma, hoje andamos entre elas, almas.

Põe atenção como os olhos falam. Alguns gritam, outros esbravejam, outros caridosos, muitos invejosos. Mais do que aprender outra língua por sons, aprendemos a linguagem do olhar. Muitos que nunca notaram sem querer agora falam a língua dos bichos que em sua maioria sempre tentaram nos falar pelo simples olhar. Esta é a parte boa de ficar em silêncio e em casa. Confesso que saio para fazer compras de mercearia e em momento de puro desespero cedi a chamados de amigos e fomos tomar uma cerveja em um bar. Claro respeitamos todas as orientações de segurança. Nada de abraços, apertos de mãos e nos sentamos bem longe um do outro e lugar era muito bem ventilado. Parecia festa de criança com muito brigadeiro. Mais tarde tomei uma dura de minha filha e com razão: - Parecendo menino! Quanta falta de juízo! Me pus sério por fora. Olhar de arrependimento. Com meus olhos a vi pequenina criança, quando as broncas era eu quem dava. Ela tinha razão é claro e prometi não mais faria estrepolias. Que maravilha envelhecer e ver nossas “crianças” preocupadas com a gente. O coração, o peito doem tamanho amor.

Voltando a pandemia. Ela também nos dá tempo de relembrar e aqui, mais uma reminiscência bem lá de longe.

Nunca fui bom de matemática. Tabuada era um suplício. A de dez, de dois, com esforço a de cinco, eu me dava bem. Tinha a de um, mas esta a professora nunca pedia. Detalhe, não podia contar nos dedos, pois as mãos tinham que ficar sobre a carteira, para serem vistas pela mestra possuída, olhos de maritaca, de tão vermelhos de raiva. A régua na mão mais parecia um facão, pronto a decepar nosso pescoço em caso de erro. Verruga enorme no nariz. Claro, não era nada disso. Ela era bonita e carinhosa conosco, mas era como bruxa que a víamos em dia de tabuada. Talvez fosse essa a nossa maior preocupação infantil, a tal da matemática. O ano lembro bem, 1963. Ano do assassinato de Kennedy. Fomos dispensados das aulas do grupo escolar e lembro que, ao chegar em casa, todos choravam como se tivessem perdido alguém da família. Chorei também, mesmo não sabendo motivo.

O país vivia um frágil lampejo de democracia. O parlamentarismo acabava de ser derrotado nas urnas. Jango presidente. O resto da história certamente todos conhecem.

Mas queria mesmo é falar de Belo Horizonte, minha Curral del Rei. Os ficus enfeitavam a Avenida Afonsa Penna e onde hoje está a rodoviária ficava a bela Feira de Amostras. Foi lá que, pela primeira vez, vi um formigueiro vivo, funcionando dentro de um terrário de vidro. Amor à primeira vista pelas miudezas da natureza mudou meu olhar. Passei a buscar ainda criança as maravilhas de um mundo quase invisível para a maioria das pessoas. Parafraseando Manoel de Barros, "meu quintal (tornou-se) é maior do que o mundo".

Cidade pacata, os bondes estavam sendo desativados, mas ainda os vi rodando em guinchos e suaves solavancos em morosa velocidade. A vida em BH era assim. Crianças como eu iam a pé para o Instituto de Educação. Correria e risadas na saída, carrinho amarelo da Kibon, saquinhos de Delicado, balas Chita e pirulitos de açúcar em tabuleiro de madeira. A vida era doce.

Pousei Uberlândia. Outro dia, um domingo, fui convidado por um amigo/irmão para uma galinhada beneficente. O cabra estava num mau humor de fazer inveja em cachorro bravo amarrado. Danou a excomungar Belo Horizonte. — E você é de lá! Bramiu ao me ver.

- Como assim? Em espanto.
- Como é que pode morar num inferno daquele?

E eu ainda sem entender.

- Imagina - continuou - Você chega ao aeroporto e até que te deixam sair se vão duas, três horas. Pega o buzu, pois o aeroporto fica literalmente nos confins do mundo, e são mais duas, três horas até chegar ao centro. Pega um táxi para o local de reunião, trânsito parado e lá se vão mais três, quatro horas. Isto quando consegue chegar. Entardece, aí vira loucura geral. Você tenta voltar para o hotel, outra eternidade. Toma um banho com o estômago nas costas de tanta fome e sai. Outra guerra. Aí quando você chega ao restaurante, ele está fechado! Tem dó gente! Como é que você consegue morar num lugar desse? 

Eu, calado, deixo desabafar. Não me contenho. Ataque de riso daqueles incontroláveis. O amigo estava assim porque teria que viajar e de carro, desta vez para a capital. Rimos juntos. Ele já estava conformado.

- Também não é assim, né mano velho! 
- É, suspirou. Tô fazendo drama.

E tome risadas. Isto me fez lembrar de outro amigo que mora aqui no Prata. Fomos juntos a BH ministrar curso. Na Savassi, tempão para atravessar a Getúlio Vargas. Ele, tranquilo, olhou para um lado, olhou para outro e me cutucou com pergunta: - Povo daqui trabalha não?

Ao ver minha cara de desentendido completou:

- Uai, eles só ficam andando de carro o dia todo!
Saudades de minha Belo Horizonte.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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