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29/04/2019 às 13h27min - Atualizada em 29/04/2019 às 13h27min

Cubanos que permanecem em Uberlândia após o fim do Mais Médicos contam suas histórias

Prefeitura diz que 15 profissionais estão trabalhando pelo Mais Médicos na cidade, mas todos brasileiros

DANIEL POMPEU
Yoanka Averhoff Garcia quer aprovação no Revalida para voltar a exercer atividade médica | Foto: Daniel Pompeu
Dos 19 cubanos que passaram por Uberlândia por meio do Programa Mais Médicos, apenas três ficaram. O Diário de Uberlândia conversou com eles para entender as situações e os motivos que os levaram a optar pelo Brasil são variados, indo desde a aversão ao regime cubano, até a constituição de uma família no País.

Variadas também são as dificuldades encontradas por esses estrangeiros para permanecer na cidade. Os três, por exemplo, tiveram de abandonar a Medicina, já que o diploma estrangeiro precisa ser reavaliado, e enfrentam dificuldades financeiras
após o fim da parceria do programa entre os países.

O programa foi criado em 2013, no governo de Dilma Rousseff (PT), junto a uma parceria entre Brasil e Cuba, com o objetivo de trazer médicos do país caribenho para lugares onde havia falta de profissionais brasileiros. Cuba resolveu sair do programa seis anos depois, após declarações negativas sobre as condições de trabalho, remuneração e formação dos médicos cubanos feitas pelo hoje presidente Jair Bolsonaro (PSL). Entre as críticas, estava o fato de que dos R$ 10 mil pagos pelo Governo Federal para cada médico atuando no país, apenas R$ 3 mil eram repassados aos profissionais por Cuba.

Cerca de 8 mil cubanos, distribuídos em 3 mil municípios em todo o País, participavam do programa antes do fim do contrato. Desde a adesão, Uberlândia já chegou a ter 19 cubanos atuando na rede pública de saúde. Atualmente, são 15 profissionais trabalhando pelo Mais Médicos, mas todos brasileiros, distribuídos nos setores oeste, central-norte, leste e zona rural, de acordo com a Prefeitura.
 
DECISÃO
Yoanka Averhoff Garcia, de 32 anos, viveu em Cuba por toda sua juventude. O Brasil, entretanto, já habitava fortemente seu imaginário. Garcia passou a infância e adolescência assistindo a novelas brasileiras que encontravam espaço na rígida programação da televisão estatal cubana. “O Rei do Gado, Felicidade, Mulheres de Areia”, lembra. Graças a tela, Garcia sempre sonhou em visitar o país, retratado como diverso e cheio de festas. A oportunidade de conhecer de perto aquilo que via pela televisão veio em 2014, através do Mais Médicos.

A decisão dos médicos de ficar por Uberlândia veio dois anos antes do fim do Mais Médicos, em 2017. Todos aqueles que ainda tinham o contrato válido quando o programa acabou e estavam em Uberlândia voltaram para o país caribenho no início deste ano, de acordo com apuração do Diário.

O contrato de trabalho tinha validade de três anos. Antes de vir ao Brasil, Garcia já havia ficado na Venezuela por dois anos para trabalhar em um programa muito similar ao Mais Médicos. O ímpeto de desertar de Cuba só veio quando conheceu o Brasil junto a outros 11 cubanos, em 2014.

Quando o contrato de Yoanka Garcia acabou, ela tomou a decisão de se tornar desertora, termo popularmente utilizado no país caribenho para definir aqueles que saem e decidem não voltar. Tanto ela, quanto os dois outros médicos que ficaram em Uberlândia estão proibidos de entrar no país natal por pelo menos oito anos.

A médica, assim como os outros colegas de Cuba, atuou em Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSFs) da cidade. Especificamente no caso de Garcia, ela fazia visitas domiciliares duas vezes por semana para acompanhar de perto a saúde e condições de vida das famílias dos bairros que atendia.

“Eu me identifiquei demais com o Brasil. Às vezes, de tanto que eu me identifiquei, eu penso que nasci aqui”, disse Garcia. Ela explica que quando tirava férias, retornava à Cuba para visitar a família e percebia que seria difícil se adaptar novamente ao país de origem.

 
“Eu experimentei tantas experiências boas, diferentes. Eu me sentia tão livre por fazer tanta coisa que lá [em Cuba] ficávamos limitados a fazer porque éramos punidos”, disse.

A médica cita como exemplo a liberdade de expressão política, de se manifestar quando há insatisfação com o governo. Os que desafiam a ditadura, de acordo com Garcia, são marcados como anticomunistas e o acesso a serviços públicos, oportunidades e até o direito de sair do país podem ser perdidos.

“Gosto de muito de liberdade, não gosto de me sentir presa em lugar nenhum”, declarou. Ela disse que no bairro onde morava, na cidade de Cárdenas, havia uma unidade do Comitê de Defesa da Revolução (CDR), órgão responsável por monitorar os habitantes e enviar as informações ao governo.

Antes do fim de seu contrato, a médica já comunicava sua família sobre a possibilidade de não voltar mais à Cuba. A prática de desertar, de acordo com Garcia, faz parte da cultura e já acontece há muitas décadas. Por isso, a família e amigos da médica em Cuba foram compreensivos com a decisão. “Eu me preparei para esse momento que estou vivendo. Eu me preparei psicologicamente porque não é fácil, não é para qualquer um”, afirmou.

Após o fim do contrato, Yoanka ficou seis meses desempregada no Brasil e só sobreviveu porque havia se preparado financeiramente para o desafio. Os médicos estrangeiros só podem atuar caso consigam passar na prova Revalida, procedimento difícil para a realidade de formação dos cubanos, de acordo com Garcia, que prestou a prova duas vezes. Ela tentou então trabalhar em áreas análogas à medicina, sem sucesso.

 
“Entreguei meu currículo em várias farmácias aqui de Uberlândia. Ninguém nunca me chamou”, disse. A médica conseguiu um emprego em uma sorveteria como atendente, onde trabalhou por um ano. Agora, trabalha em um restaurante no Centro da cidade.

Garcia diz não se arrepender da decisão de ficar no Brasil, mesmo que isso signifique que ela nunca mais pratique a medicina, profissão para a qual estudou seis anos na Universidade de Matanzas, em Cuba. “Eu sinto falta, não posso falar que não. Eu amo minha profissão. Mas mesmo assim, não sinto arrependimento. O que for para fazer, eu vou fazer”, disse.
 
FAMÍLIA
Outra cubana, que veio junto com Garcia para Uberlândia, não quis se identificar ao conversar com o Diário. Ela hoje tem 33 anos e também trabalhou um período na Venezuela antes de vir ao Brasil. Desde pequena, a cubana cultivou o sonho de ser médica. “Eu sou uma pessoa que gosta de ajudar os outros”, explicou.

De acordo com ela, a medicina em Cuba tem um caráter humanista. Quem pratica a profissão, não espera ficar rico, mas viajar o mundo para prestar os serviços onde for necessário. Ela conta que já teve dificuldades em ser aceita tanto pelos médicos brasileiros, quanto pelos pacientes, que frequentemente se recusavam a ser atendidos.

“No começo foi bem difícil, porque o povo não nos aceitava. Talvez um pouco pela dificuldade com o idioma. Mas isso só no começo, depois a gente foi se acostumando”, disse.


Ela casou-se com um brasileiro que conheceu enquanto ainda atuava no Mais Médicos. Com ele, teve uma filha, que hoje tem quase dois anos de idade. “Eu tive que tomar uma decisão. Ou era meu país ou era minha família”, declarou. A constituição da família se tornou o principal motivo para ter ficado em Uberlândia. Ela diz que sempre gostou da cidade e que a paixão tem crescido mais ainda nos últimos tempos, apesar das dificuldades.

Ela admite que não imaginava que seria tão difícil conseguir outro emprego quando não pôde mais praticar medicina. “Eu já fui a tantos lugares, deixei currículos e até agora nada. Nesse aspecto não sei nem o que falar, porque nem consigo entender”, disse, emocionada.

Ela diz não se arrepender da decisão de ter ficado e declara ter esperanças para o futuro. Os planos agora são de prestar a prova do Revalida e tentar validar seu diploma no país. “Sinto muita falta [de ser médica], é a única coisa que eu gosto de fazer.”

Um terceiro cubano de 50 anos, que também preferiu não se identificar, veio para Uberlândia em 2014. Quase toda família dele, exceto a mãe, saiu do país caribenho ao longo da vida para não mais retornar. Pelo histórico familiar de insatisfação com o governo, o médico teve dificuldade em ser aprovado para participar dos programas internacionais. O governo tinha receio do estrangeiro desertar, e foi exatamente o que ele fez quando surgiu a oportunidade de vir ao Brasil pelo Mais Médicos, depois de praticar medicina em Cuba pela maior parte da carreira.

Quando chegou a Uberlândia, ele diz ter sido perseguido por uma colega médica que o acusava de ser um falso médico atuando nas UBSFs. “Eu sofri muito preconceito e xenofobia por ser cubano”, disse. Mesmo assim, acabou se adaptando bem à cultura local. Apesar das dificuldades iniciais de socialização, ele aponta outros aspectos parecidos com o país de origem que o deixaram mais confortável para ficar na cidade. “Graças a Deus a comida de Minas Gerais parece muito a de Cuba. A de outros lugares do Brasil não parece”, disse.

Ele conta que resolveu ficar em Uberlândia porque além de gostar muito da cidade, mantém uma relação estável aqui. 

 
“Eu me cansei do comunismo. O que eu mais amo no mundo é minha mãe, e ela está sozinha em Cuba. Quero trazê-la para cá. Estamos planejando, mas na situação que estou, ainda é difícil”, disse.


* Essa matéria foi atualizada às 13h14 do dia 11 de maio de 2020.







 

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