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31/03/2019 às 09h30min - Atualizada em 31/03/2019 às 09h30min

Moradores de Uberlândia relembram manifestação "Quebra Quebra"

Protesto era contra o aumento do custo de vida no Brasil e pelo preço das entradas nos cinemas locais; quatro pessoas foram mortas e lojas foram saqueadas

NÚBIA MOTA
Manifestação 'Quebra Quebra' se tornou um dos maiores protestos visto pela população de Uberlândia | Foto: Acervo Arquivo Público/Divulgação
Há 60 anos, Uberlândia tinha cerca de 70 mil pessoas, apenas 10% da população de hoje. Era uma cidade pacata, onde quase todos se conheciam, e os poucos policiais da época atendiam questões de pequena relevância. Até que nos dias 18 e 19 de janeiro de 1959, a população presenciou uma confusão que nunca mais se repetiu por aqui. Em uma manifestação batizada como "Quebra Quebra", quatro pessoas foram mortas, 12 ficaram feridas, 200 foram presas, lojas foram saqueadas e os quatros cinemas locais ficaram totalmente destruídos.

O que começou como um movimento pacífico pelas ruas do Centro, inicialmente contra o aumento do custo de vida no Brasil e com o estopim pelo preço das entradas nos cinemas locais, terminou em dois dias do maior protesto já visto pela população. 

No dia 18 de janeiro de 1959, os ingressos do Cine Éden, Cine Teatro Uberlândia, o Cine Regente e o Cine Paratodos passaram de 18 para 30 cruzeiros. Na época, poucos eram os locais de diversão, e os estudantes então foram para a porta desses estabelecimentos protestar. Segundo os jornais da época, a manifestação se iniciou com a fila boba, que consistia em chegar no guichê, perguntar o preço do ingresso e voltar para o fim da fila sem comprar nada, cedendo lugar para o próximo, que fazia a mesma coisa e assim sucessivamente.

“Começaram com os estudantes, mas outras pessoas estranhas se infiltraram no meio, envolvidas com política, para não dizer, com comunismo. Aquilo foi uma força estranha. Nunca tinha visto, nem vi algo parecido em toda minha vida”, disse o jornalista Alberto Augusto de Oliveira, que cobriu o Quebra Quebra pelo jornal O Triângulo, fundado por ele.

A longa fila então chamou a atenção de outras pessoas e o que se imaginava um movimento pacífico tomou rumos inesperados. Aproveitando a oportunidade, a população invadiu, depredou e incendiou os cinemas e o rastro de destruição se alastrou pela cidade. Como o dia 18 de janeiro de 1959 era um domingo, as portas do comércio foram arrombadas e o povo passou a carregar sacas de arroz e outros cereais, armas e munições, aparelhos de rádio e até máquinas de costura.


Foto: Destroços de um dos quatro cinemas destruídos durante protestos | Acervo Arquivo Público/Divulgação

Os comerciantes corriam para as portas de suas lojas, mas não tinham como enfrentar a rebelião. “Tinha um monte de coisa caída na rua, no mato escondido.  A gente via marmelada, goiaba e sardinha. Tinham pessoas que escondiam as coisas dentro de cisternas”, disse Nilo Souza, que na época tinha 10 anos.

As lojas mais afetadas, entre tantas, foram os armazéns de Messias Pedreiro e a Casa Capparelli, de Francisco Capparelli, que ficavam bem próximas uma da outra na avenida João Pessoa, onde antigamente passava o trem da Mogiana. “As pessoas levavam tudo. O que não conseguiam levar, desperdiçavam. Foi um desastre. Xingavam a família. Chamavam meu cunhado de Conde Capparelli. Ele era pobre, mas trabalhou muito e conseguiu fazer a casa comercial ser bem-sucedida. Queria educar bem os filhos, como educou. Teve muita inveja”, lembrou a musicista Cora Capparelli, viúva do médico Vittorio Capparelli, que era irmão de Francisco.

Na época, com 29 anos, o jornalista Alberto Oliveira contou que a cena mais chocante vista por ele foi a morte de um estudante. “Ele devia ter uns 14 para 15 anos e estava em cima do antigo viaduto Salvador Melazzo, perto da Mogiana, hoje Terminal Central. Foi morto por um tiro de fuzil, disparado pela polícia. Ele estava só olhando a manifestação. Não estava fazendo nada de errado”, afirmou o repórter.

Já no dia seguinte, 19 de janeiro de 1959, quase ao fim dos saques, quando a população recolhia os últimos bens das lojas arrombadas, Alberto Oliveira viu uma mulher levar uma lata enquanto dizia que seu filho pequeno nunca tinha tomado leite em pó. “Era veneno para matar formiga. A mulher não sabia ler e não conhecia leite em pó”, contou o jornalista.

A terceira cena marcante ele não chegou a ver, propriamente, mas soube do fato e acompanhou depois a vítima. “Aconteceu com uma mulher chamada Sebastiana, torcedora fanática do Uberlândia Esporte Clube. Quando saquearam a Casemg, uma pilha de arroz caiu sobre ela. Ela ficou paralítica. Depois do acontecido, vi a mulher numa cadeira de rodas, assistindo aos jogos. Vê-la naquela situação era entristecedor”, disse o jornalista.
 
DESFECHO

Foto: 
Interior do Armazém Capparelli após série de saques | Acervo Arquivo Público/Divulgação

O vandalismo do Quebra Quebra de 1959 em Uberlândia só cessou depois que o reforço policial veio de Uberaba, Araguari, Tupaciguara e Belo Horizonte. Mais de 300 homens se aquartelaram no Mercado Municipal e de lá saíam à caça dos saqueadores, ordenando toque de recolher, mesmo durante o dia. “A gente tinha que ir pra casa 10h da noite, senão ia todo mundo preso. Eu tinha uma vizinha que tinha uns sacos de arroz em casa, ali na Mello Viana, e a polícia foi lá para saber se ela tinha era roubado”, lembrou Nilo Souza, dono do Açougue do Nilo.

Seis meses depois da rebelião, os cinemas voltaram a funcionar, com preços reduzidos. A população, aos poucos, se esqueceu do Quebra Quebra e Uberlândia voltou ao normal. O Judiciário chegou a divulgar nomes de alguns envolvidos, mas optou, ao fim, por não prendê-los por falta de provas. Os verdadeiros líderes nunca foram encontrados.

O promotor da época despachou pelo arquivamento do processo, o que foi acatado pelo juiz. Muitos anos depois, poucos donos de comércio foram indenizados pelo Estado pelas perdas. Porém, o que receberam foi muito pouco. O dinheiro havia desvalorizado. Os prejuízos contabilizados foram da ordem de 150 milhões de cruzeiros.

O historiador Antônio Pereira da Silva, colunista do Diário de Uberlândia, conseguiu identificar dois dos mortos. Eram os estudantes Sérgio Paulo de Araújo, de 14 anos, que morreu com um tiro na nuca, e Maria Eurípedes de Oliveira, de 15 anos, atingida no abdome.

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