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26/08/2018 às 10h34min - Atualizada em 26/08/2018 às 10h34min

30 pacientes em ventilação mecânica são atendidos em casa

Paciente de Uberlândia conseguiu a assistência domiciliar 9 anos antes da legislação federal garantir esse direito

NÚBIA MOTA
Fábio Júnio vive em casa com a família graças ao avanço do projeto | Foto: Núbia Mota
Lucas faleceu há 6 anos, mas o caso dele contribuiu para que cada uma das 19 crianças e 11 adultos que hoje fazem uso de ventilação mecânica invasiva em casa, vivam bem longe do hospital. Graças a uma ação judicial movida pelos pais dele em 2007 - a técnica em radiologia Eliane de Moura e o motorista Cesar Souza -, o primogênito da família pôde passar os últimos 5 anos de vida no convívio familiar, andou de barco, viajou e ganhou uma irmã. 

A iniciativa, pioneira no Brasil e com o respaldo do Ministério Público Estadual (MPE) de Uberlândia, abriu precedente pra que 100 pessoas na cidade que precisaram de aparelhos para respirar, além de tantas outras país afora, tenham voltado para o lar, com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar paga com recursos públicos.

O Programa de Atenção Domiciliar (PAD) foi criado no Hospital de Clínicas (HC) de Uberlândia em 1996, e era todo custeado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A partir de 2013, recebeu o nome de Serviço de Atenção Domiciliar (SAD), também com recursos do Ministério da Saúde, com habilitação para o Melhor em Casa. Mas foi em 2007, depois da ação ganha na Justiça pelos pais de Lucas, que foi possível que pessoas dependentes de ventilação mecânica fossem para casa. “Não existia essa possibilidade. Mas os pais do Lucas foram muito insistentes e desrespeitaram todos os limites impostos. A partir do momento que o hospital foi obrigado na justiça a levar essa criança para casa, fomos atrás para capacitar a equipe”, afirmou Laerte Honorato Borges Júnior, gerente de atenção a doenças crônicas do HC.

Hoje, as duas equipes do SAD, compostas por médico, nutricionista, enfermeira, fisioterapeuta, dentista, terapeuta ocupacional e assistente social, recebem R$ 100 mil do Ministério da Saúde para o pagamento da folha. Esses profissionais especializados do HC dão atendimento também aos pacientes que fazem oxigenoterapia, com suporte ventilatório mais simples. Como o valor não custeia todas as despesas, tem ainda uma contrapartida do Município e do próprio HC. A Secretaria Municipal de Saúde fica responsável pela locação dos ventiladores que vão para as casas dos pacientes. Cada equipamento custa R$ 1,2 mil por mês. São atendidos tantos pacientes do HC como do Hospital Municipal. 

No Brasil, a Portaria 825 que redefiniu a atenção domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualizou as equipes habilitadas só foi aprovada em 2016, ou seja, 9 anos depois de Uberlândia já estar oferecendo ventilação mecânica em casa. “Outras famílias viram o primeiro caso judicializado na cidade e também quiseram. Para os demais casos, a Secretaria de Saúde e a universidade entenderam que era viável, estimularam a equipe e conseguiram recursos para que outras pessoas fossem desospitalizadas, sem precisar judicializar, mas com o respaldo do Ministério Público, com segurança legal, porque até então o SUS não falava nada disso”, disse Laerte Honorato.   

Segundo o promotor de Justiça de Defesa da Saúde, Lúcio Flávio de Faria e Silva, que ajudou os pais de Lucas e acompanha os outros atendimentos desde o início, foi a partir da experiência em Uberlândia que o Ministério da Saúde mudou a legislação para ventilação mecânica. Uberlândia hoje é visitada por várias cidades em busca de capacitação para também oferecer o serviço. “Promotores de outras cidades e outras equipes de saúde me ligam ou vem a Uberlândia. Quando vamos em outras cidades, os profissionais da saúde veem o promotor muito distante, só para esse lado de processo. Não tem essa aproximação que nós temos aqui em Uberlândia. Não temos nenhuma dificuldade de diálogo entre o SAD e a promotoria. Desde o início, sentamos juntos e construímos o projeto”, disse Lúcio Flávio. 

Segundo o gerente de atenção a doenças crônicas, Laerte Honorato, além da possibilidade de vida relativamente normal dentro de casa, outro ponto importante é a abertura de novas vagas de internação, principalmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), onde geralmente esses pacientes ficam por precisar de ventilação mecânica e de monitoramento 24h. “Como temos 30 pacientes em casa, são 3 UTIs completas com vagas para outras pessoas. Uma UTI, geralmente, tem 10 vagas cada uma. O fato deles saírem promove novos acessos ao SUS. Se considerarmos que a média é de 10 dias por internação, em um ano, eu consigo colocar naquela cama, de um só paciente, 36 pessoas”, disse o fisioterapeuta. 

ATENDIMENTO
Diário acompanha audiência pública no Ministério Público 


No dia 31 de julho, o promotor de Justiça de Defesa da Saúde, Lúcio Flávio de Faria e Silva, autorizou o Diário de Uberlândia a acompanhar duas audiências no Ministério Público Estadual (MPE) com as famílias de pacientes que usam ventilação mecânica no hospital e poderiam voltar para casa. A intenção, segundo o promotor, é dar segurança para a família de que o atendimento será mantido pelo SUS e também o fornecimento de medicação, caso seja necessário. Por outro lado, o HC também tem a segurança de que a família vai cumprir o seu papel. “No início, não foi tudo as mil maravilhas. As equipes foram se capacitando, foram amadurecendo, tinham famílias relutantes, que não queriam o paciente em casa. E hoje é um orgulho que tenho de dizer que participei desde o início. A audiência dá uma segurança pra família e também impõe certas responsabilidades, porque o hospital não é hotel. Mas no geral, vem sendo tranquilo”, afirmou Lúcio Flávio. 

Os membros da família que vão ficar responsáveis pelo paciente em casa passam por um treinamento para poder operar o ventilador mecânico, fazer a higiene dele, entre outras coisas. Assim que termina a audiência e todas as partes assinam o termo de responsabilidade, o familiar é instruído a procurar pela Unidade de Atendimento Integrada (UAI) do bairro Tibery, onde funciona o programa Melhor em Casa, para solicitar camas hospitalares ou cadeiras especiais. Os ventiladores são alugados em uma empresa particular licitada pela Prefeitura. O transporte dos equipamentos, a dieta e as fraldas ficam por conta da família. Caso esta tenha condição financeira, também fica a cargo dela comprar o ambu, por R$ 150, e o aspirador, por R$ 400. No contrário, a equipe do SAD consegue os itens por meio de doações.

Antes da volta para a casa, os profissionais do HC visitam o local para ver o melhor cômodo para o paciente ficar, a voltagem das tomadas, entre outros. A intenção é que se mantenha o máximo a rotina familiar e os hábitos do próprio doente. Durante a primeira semana, duas vezes ao dia, a equipe do SAD visita a casa para acompanhar e tirar as dúvidas. Com o passar do tempo, as visitas vão espaçando, mas os pacientes continuam sendo atendidos, pelo menos uma vez por semana, por alguns dos profissionais das duas equipes. As pessoas assistidas só voltam para o ambiente hospitalar se houver alguma intercorrência. Caso isso ocorra, é preciso acionar a equipe da UFU para avaliar se é urgência, emergência ou algo mais simples. No caso de precisar de uma ambulância, o programa tem um convênio com a Medlar. “Vamos sentindo. Cada família é de um jeito. Quando vemos que está com muita dúvida, continuamos indo mais vezes”, disse Laerte. 

Na segunda audiência do dia, as irmãs Edilamar e Ildamar Rodrigues Carrijo, filhas de Diomar Rodrigues Peixoto, de 79 anos, falaram com o Diário. Elas estavam cientes da responsabilidade e na expectativa de terem o pai de novo em casa depois de dois meses internado no Hospital Municipal. Mas o aposentado, com problemas respiratórios, não chegou a voltar. No último dia 12, o idoso faleceu. “Ele estava muito ruim e não tinha como voltar para casa. Mas Deus sabe o que faz”, disse Ildamar. 

PRIMEIRO CASO
Lucas abriu precedente para que outras pessoas fossem atendidas 


Lucas Ramos de Souza nasceu em 2002 e, desde o início, os pais perceberam que havia algum problema, devido ao atraso no desenvolvimento motor. Ele não conseguia sentar e tinha dificuldade para falar. Até 1 ano e 1 mês, foram feitas investigações e a criança viveu em casa, mas, devido a uma pneumonia, foi para UTI do HC, onde foi entubada. Desde então, Lucas nunca mais conseguiu viver sem aparelhos e por isso, passou a morar no hospital.  

Com 2 anos e 6 meses, depois de um exame feito em Ribeirão Preto (SP), a criança foi diagnosticada, por meio de uma biopsia muscular, com miopatia nemalínica, uma doença genética que leva à fraqueza muscular. “Eu ficava com ele de dia, meu esposo ficava à noite. Depois de um tempo, conseguimos uma pessoa para dormir 3 vezes por semana”, disse Eliane Moura Ramos, mãe de Lucas. 

Apesar do abandono paterno ser comum nesses casos, Cesar se manteve firme ao lado do filho e da esposa. Além de ter aberto precedente para a ventilação mecânica na cidade e no Brasil, ele foi o primeiro pai a passar as noites com uma criança no Hospital de Clínicas como acompanhante. “Falavam que eu ia constranger as outras mães, mas era a única hora que eu podia ficar com o meu filho. Me falaram para ficar com ele durante o dia, mas quem ia pôr comida na mesa? Eu precisava trabalhar”, disse Cesar.

Eliane e Cesar nunca aceitaram a sentença dos médicos de que o filho iria viver para sempre em um ambiente hospitalar e passaram a pesquisar e indagar profissionais de saúde. “Eu nunca aceitei. E fui atrás. Fui atrás do aparelho, mas era muito caro, custava R$ 100 mil, e precisava manter uma estrutura com remédios e médico. Fui no Ministério Público e fiz o pedido. Ganhamos e só dois anos depois que ele veio para casa”, disse Cesar. 

Depois de 5 anos, 7 meses e 1 dia, em 2008, Lucas finalmente voltou para casa. Com a mudança, a família ganhou toda a liberdade. O menino, inclusive, ganhou uma irmã, Ana Luiza, hoje com 8 anos. Lucas passeou de barco, tomava sol, comemorava os aniversários, viajou, ia para o trabalho com o pai e tudo mais que a condição dele permitia. “Se ele tivesse ficado no hospital, com certeza eu não teria a Ana Luiza. Eu e o meu esposo éramos igual o sol e a lua, não nos víamos nunca. Eu já conheci várias crianças que foram embora para casa com o aparelho e fico muito feliz da gente ter começado isso e mostrado que era possível. Sempre é melhor em casa”, disse Eliane.

Luiz Felipe 
De volta pra casa após quase três anos


Luiz Felipe hoje tem 12 anos. Frequenta a escola regular, brinca com as irmãs gêmeas de 7 anos, Beatriz e Geovana, joga videogame, reaproximou do pai e alterna a alimentação entre a sonda e a boca. Desde os 3 meses de idade, viveu com uma traqueostomia para a ventilação mecânica, quando começou a morar no Hospital de Clínicas. Ficou por 8 meses na UTI e permaneceu internado até 2 anos e 10 meses. Portador de uma paralisia diafragmática, Luiz Felipe foi o segundo caso de pacientes em Uberlândia que voltou para casa nessas condições. “Eu vinha para casa só para lavar roupa, mas a cabeça ficava lá”, conta Fernanda Santos, mãe do menino.

Em casa desde 2009, tanto Luiz Felipe, como a mãe dele, Fernanda, reconstruíram a vida. Fernanda se casou, teve outras filhas e pôde levar a vida cuidando da família. O segundo relacionamento começou no próprio HC, quando o pai das gêmeas acompanhava a tia internada. “Agora a gente pode ir em festa. Vamos na casa do meu irmão em Araguari. Tudo que podemos fazer, fazemos. Acho que todas as mães que moravam no hospital tinham vontade de voltar para casa, eu queria, mas foi a mãe do Lucas que teve a iniciativa de correr atrás, o que foi muito bom”, disse Fernanda.

Durante a entrevista ao Diário de Uberlândia, o paciente, morador do bairro Guarani, recebeu a visita da nutricionista Daniela Name Chaul, do SAD, que levou leite para toda a família e acompanha a criança desde que ela voltou para casa. Pelo menos uma vez por semana, um dos profissionais aparece, mas a mãe é instruída a fazer os procedimentos nos outros dias, como fisioterapia, etc. “Ele tem a possibilidade de comer pela boca, mas mantemos pela gastro para ele conseguir ingerir toda a necessidade proteica. São só 3 casos assim, o restante das crianças são mais sequeladas e comem só pela gastro. Esse leite que eu trouxe é para toda família. Ele come o que todos comem. É um caso que quase não tem intercorrência e tudo que precisa fazer, faz em casa mesmo”, disse Daniela. 

DIFICULDADE
Outros dois casos de crianças em atendimento 


Dois casos mais recentes de ventilação mecânica domiciliar são de Fábio Júnio  e Maria Vitória, ambos com 2 anos. Ele com atrofia muscular espinhal (AME) tipo 1 e ela com paralisia cerebral. No caso de Fábio Júnio, a estadia no hospital foi muito mais rápida, graças ao avanço do projeto do SAD. Ele ficou hospitalizado por 2 meses e meio e pôde logo voltar para casa e fazer companhia para a irmã mais velha, Ana Lúcia, hoje com 7 anos. “Ela quem pediu um irmão e sofreu muito, porque ela só tinha 5 anos quando ele foi internado e queria ficar comigo e com o neném. Dizia que estávamos demorando muito a voltar”, disse Fernanda Pelizer Lima, mãe de Fábio Júnio. 

Hoje, além de ter assegurado todo atendimento domiciliar ao filho, Fernanda e o marido, o encarregado de supermercado Fábio Silva Oliveira, processaram a União, o Estado e o Município e ganharam na Justiça o tratamento com o medicamento importado Spiranza, que estabiliza o avanço da doença e custa R$ 3 milhões. O dinheiro ainda não foi disponibilizado e a família corre contra o tempo, aguardando o cumprimento da ação pelas partes. “A cada dia que passa, ele perde um pouquinho dos movimentos. Antes mexia os braços e as pernas, hoje mexe um pouquinho os pés e as mãos. A doença é muito rápida. Todo dia, evolui um pouco mais”, disse Fernanda. 

Já a volta de Sílvia Helena Fernandes Dutra e a filha Maria Vitória, que comemorou 2 anos e ganhou uma festa de aniversário no último dia 17, não foi tão rápida, porque as duas não tinham uma família em Uberlândia. Silvia veio de Fortaleza (CE) ainda grávida, na frente do marido que garantiu que logo viria para buscar emprego, mas nunca apareceu. Devido a um parto comprometido no Hospital Municipal, faltou oxigenação para a recém-nascida que ficou com uma sequela grave de paralisia cerebral. “Como não tinha ninguém aqui, ficamos morando no hospital por mais de 1 ano. Saímos há 8 meses, depois que conheci meu segundo marido, que assumiu também minha filha. É outra vida, ter uma casa, tomar banho com calma e ver a minha filha no quartinho dela”, disse Silvia. 

Hoje, tanto Sílvia como o marido, Alisson Vieira Guerra, estão desempregados. Eles vivem com a ajuda dos pais de Alisson, mas as despesas começaram a apertar. Devido a menina ficar praticamente todo o tempo ligada em aparelhos, a energia da casa vem alta e há 3 meses a família não consegue pagar a conta de luz. “É uma luta. Tem mês que ganho cesta básica para fazer a sopa da Maria, mas deu uma apertada. Tenho fé em Deus que tudo vai melhorar”, disse a mãe. 


Depoimento
Há 10 anos, em uma matéria para o extinto jornal Correio de Uberlândia, fui conhecer, pela primeira vez, a pediatria do HC. Se não me engano, era uma pauta sobre a dieta das crianças dentro da unidade hospitalar. Naquele dia, eu conheci o Luiz Felipe e a Ana Laura. Ele com paralisia no diafragma, usando ventilação mecânica, abandonado pelo pai e morando no hospital com a mãe desde bebê, e ela, com câncer em estágio terminal. Sai de lá arrasada e olha que naquela época eu nem tinha filhos.

Depois de um tempo, Ana Laura morreu e Luiz Felipe foi para casa no ano seguinte. Nunca mais soube dele, mas também nunca o esqueci. Seu nome ficou gravado. Na audiência com o promotor Lúcio Flávio, no Ministério Público, me veio o rostinho daquele bebê circulando pelos corredores do HC no braço da mãe. O Luiz Felipe de um lado, o ambu do outro. Perguntei por ele ao Laerte e peguei o endereço. 

Na última quarta-feira (22), o reencontrei, em casa, em uma situação totalmente diferente. Luiz Felipe tem 12 anos, não cresceu muito por causa do problema de saúde, mas agora sorri. Me disse que tem 3 namoradas, gosta de comer feijão, jogar videogame e mexer no celular da mãe. Ele me acompanhou até lá fora, na cadeira de rodas. Queria ver o carro e só não passeei com ele, porque a equipe do HC chegou. Não chorei dessa vez. Acho que a maternidade nos fortalece.


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