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24/09/2017 às 05h39min - Atualizada em 24/09/2017 às 05h39min

Liberdade de expressão em discussão

Exposição e peça teatral canceladas e apreensão de quadro de artista uberlandense carecem de reflexão

ADREANA OLIVEIRA | EDITORA
Alessandra Cunha e o quadro que doou para o museu / Foto: Reprodução/Facebook

 

“Por enquanto está passando um turbilhão de coisas pela minha cabeça. Estou chocada por ter o meu nome ligado a pedofilia. Ainda tenho medo dessa injustiça e ainda não sei como reverter essa situação estranha”. Essas são palavras da artista plástica uberlandense Alessandra Cunha, também conhecida como Ropre AC, que teve uma de suas 31 obras da exposição Cadafalso retirada do Museu de Arte Contemporânea (Marco) em Campo Grande (MS) na quinta-feira (14). Trata-se da pintura “Pedofilia”, um quadro que traz a figura de um homem, com o órgão genital aparente, e uma criança com os olhos arregalados. No plano de fundo, um olho maior. Ainda na tela ainda os dizeres: “o machismo mata, violenta e humilha.”

Cadafalso foi exposta no início do ano em Uberlândia e a artista, na época, comentou sobre o papel da arte não só contemplativa, mas também questionadora, que denuncia e mostra os males do mundo. Cadafalso é o nome do lugar onde eram julgadas e queimadas vivas mulheres acusadas de bruxaria pela Inquisição católica na idade média. A exposição sempre teve um tom de denúncia.

Em cartaz desde junho no Marco, a exposição sairia de cartaz em 17 de setembro, ou seja, ficou mais de um mês em cartaz até que chegasse uma denúncia Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente feita por três deputados estaduais que enxergaram apologia à pedofilia nas obras. A pintura retirada foi devolvida ao local no dia 16 e a exposição ganhou classificação de 18 anos.

Alessandra tem recebido apoio da classe artística, da curadoria do Marco e até mesmo da mídia de Campo Grande. Segundo a imprensa local, o secretário de Cultura e Cidadania da cidade, Athayde Nery, recebeu o quadro de volta das mãos do delegado Fábio Sampaio e disse que houve falta de diálogo. Chegaram à conclusão que a obra precisava de uma classificação etária somente.

"Fiquei e estou muito surpresa porque essa retirada da obra do museu não tem precedentes, nem base legal e principalmente não existe um motivo para essa atitude. Minha pintura é um protesto para alertar o que acontece e esses deputados a usaram para fazer politicagem”, disse a artista, que viajou para Campo Grande para desmontar a exposição no final de semana passado e está envolta em reuniões com advogados. Alessandra corre o risco de ser denunciada, formalmente, por apologia à pedofilia, assim como Lúcia Montserrat, coordenadora do Marco.

“Quero por um fim neste pesadelo. Não estou muito otimista quanto a uma retratação ou receber algo por danos morais, afinal, são pessoas ignorantes. Isso é o de menos agora. O objetivo principal neste momento é correr atrás do inquérito e ter meus direitos respeitados”, disse a artista, que doou a tela polêmica ao Marco.

Quem conhece a trajetória de Alessandra Cunha sabe de sua luta para viver exclusivamente da arte. Durante muitos anos dividiu-se entre a arte e outros trabalhos “formais”. Em Uberlândia ela realiza projetos como Uberinvasão anualmente que reúne obras de artistas do Brasil e também do exterior.

Gastão da Cunha Frota, professor de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde Alessandra se graduou, afirma que tocar na questão da violência principalmente contra a mulher, como a artista fez em Cadafalso é um trabalho muito importante. “Também é importante discutir essas questões e o que leva a interpretações equivocadas como a da apreensão da obra da artista”, disse.

O bailarino e coreógrafo Leandro Berilo, da Cia de Danças Fusion, de Belo Horizonte, que está em Uberlândia para o Festival de Dança do Triângulo, afirma que até se “arrepia” quando toma conhecimento de histórias como esta envolvendo a artista uberlandense. “É preciso pensar nessas atrocidades e fazer uma leitura desses movimentos de quem busca seu espaço na sociedade como as mulheres, os negros, a comunidade LGBT. Como eles estão com um discurso muito afiado causam estranhamento e até medo aos conservadores. A classe artística não pode se deixar abater por isso. Se fechar uma exposição sem motivo, que se abram outras três”, comentou.

 

OUTROS CASOS

A apreensão da obra de Alessandra Cunha no museu de Campo Grande deu-se quatro dias após o cancelamento da exposição “Queermuseu” no Santander Cultural, em Porto Alegre (RS). Com curadoria de Gaudênio Fidelis, a com 270 trabalhos de 85 artistas sobre diversidade sexual não agradou a alguns conservadores. Ainda no final de semana passado, o espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, na qual a atriz trans Renata Carvalho recorre à imagem de Jesus para propor reflexões sobre temas como a opressão e a intolerância contra pessoas trans e outros grupos marginalizados a partir de histórias bíblicas, foi cancelado pela Justiça de Jundiaí (SP).

A secretária de cultura de Uberlândia, Mônica Debs, afirma que vivemos um momento de inseguranças. “Insegurança para quem está expondo, neste momento, que requer indagações, questionamentos; insegurança de curadores, insegurança de patrocinadores. Mas este é o papel da arte: questionar”, disse.

O antropólogo e professor universitário Sebastião Vianney afirma que o processo de avanços no que diz respeito a liberdades de expressão e manifestação não é um processo linear. “É um processo marcado por recuos desde os movimentos contraculturais dos anos 60. E esse momento que vivemos, de final dos anos 2010 é um período de recuo e isso faz parte da história”, disse.

Ainda segundo o professor não é possível saber no que essa possível repressão e surgimento de grupos conservadores vai resultar e essa é a importância dos debates e discussões sobre o assunto. “Na última vez em que isso aconteceu culminou na segunda guerra mundial, na instalação de um regime fascista e cruel na Alemanha, Itália., Espanha e Portugal e ditaduras levadas a países como o Brasil. Pode ser que este momento não resulte em consequências tão trágicas, mas é preciso cuidado”, explica.

O lado bom é que há um número cada vez maior de pessoas que não aceitam a censura e entendem o processo de liberação sexual, pensamento e opinião. Outro ponto importante é sobre a questão da censura em si. “Há de se indagar: o que e a quem incomoda tanto? Veremos que o pano de fundo é sempre a família, especialmente no que diz respeito a exposição cancelada no Santander de Porto Alegre”, disse.

O professor explica que os grupos mais conservadores são os que entendem que a família é a base social, o que é uma verdade porque cada célula familiar é a composição da sociedade como um todo. A violência social é o ponto de partida dentro dessas células familiares. “A perspectiva com a que os grupos mais conservadores e religiosos veem a família é o modelo tradicional que existia até 1910. Inclusive, esse foi o discurso usado pela psicóloga que entrou com ação para juiz conceder liminar a terapia de reversão sexual. “Para eles a família está em decadência e um dos fatores que leva a isso é a depravação sexual, é assim que ela entende, mas o que acontece realmente é uma liberação. O conceito de família hoje em decadência era patriarcal. Desde 1940 esse modelo passa por transformações e hoje temos diferentes modelões familiares”, comenta.

Um terceiro ponto colocado pelo antropólogo é o que fazer diante de uma situação dessas. Para ele não se deve acatar ou aceitar qualquer tipo de censura. As lideranças artísticas têm que se organizar e não podem silenciar diante desta situação. “Claro que isso resulta em conflitos ideológicos. A questão ética, a filosofia da arte sequer são discutidas e o que sobra é uma discussão tola e infértil. Se não houver posicionamento das classes haverá o fortalecimento dos conservadores, o que nunca é bom. Precisamos evitar a cultura do ódio”, explica.

Vianney lembra que estamos trabalhando com uma sociedade cuja constituição é uma das mais democráticas e avançadas do mundo que garante a liberdade de expressão e opinião, o que torna inconstitucional qualquer censura, inclusive da arte.

Em artigo enviado à redação do jornal Diário do Comércio intitulado “Não. Nem tudo é arte” que você lê na integra no site www.olhanodiario.com.br o Padre Claudemar Silva afirma que a única contribuição da “Queermuseu” foi levantar a polêmica de uma antiga questão: “O que é arte?”. “De modo sucinto e objetivo, a mostra foi de extremo mau gosto, antiética e gratuitamente agressiva e polêmica.

A arte faz parte do caminhar humano e segue com o homem onde quer que ele vá. É portadora de algo que está para além do visto. Ela é discípula da estética. Mas não de qualquer estética. Ela está a serviço do belo. E no seu compromisso com o belo está comprometida com o bom e a moral, isto é, o modo altaneiro de se viver em sociedade.

Ao longo dos séculos, a arte em vários momentos foi utilizada como fim profético. A denúncia das injustiças, das hipocrisias sociais e dos infortúnios humanos eram expostos de modo a chocar a sociedade do seu tempo. E não simplesmente agredir ou vilipendiar. Entretanto, a mostra patrocinada pelo banco Santander, em muitas de suas obras não evocam o belo e o estranhamento que provocam tem a única finalidade de polemizar. Para tanto, fizeram uso de símbolos do imaginário religioso e apropriaram-se, indevidamente, de objetos com forte clamor de sacralidade imemorial. Hóstias foram usadas como pergaminho para dizeres com conotação pornográfica, numa clara infração ao artigo 208 da Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940 que condena “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” com pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Em nome da chamada “liberdade de expressão”, a exposição extrapolou o próprio conceito de liberdade que traz consigo interditos claros contra a agressão ao outro e ao seu direito de ter garantida sua dignidade, sua crença e seus valores éticos e morais respeitados. Tornou-se libertinagem. 


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