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28/05/2017 às 05h02min - Atualizada em 28/05/2017 às 05h02min

Igreja de Uberlândia é tombada como patrimônio cultural

Marco de simbolismo e religiosidade, o prédio na zona rural lembra as origens do município

WALACE TORRES | EDITOR
Capela da Saudade fica na região da Cruz Branca, na zona rural, a cerca de 30 quilômetros do Centro da cidade / Foto: Walace Torres

A Capela da Saudade, bem material mais recente tombado como patrimônio cultural de Uberlândia, não foi o primeiro templo religioso construído por aqui, mas exerceu grande influência para que as primeiras famílias a chegarem no Sertão da Farinha Podre (hoje Triângulo Mineiro) fincassem raízes e dessem origem aos costumes e tradições mantidos ao longo de quase dois séculos. Fundada em 1899 por Francisco Pereira de Rezende, o primeiro proprietário da Fazenda da Saudade, a capela na região de Cruz Branca, na zona rural, a 30 quilômetros do Centro, está impregnada de simbolismo e religiosidade que remetem aos primórdios de Uberlândia.

O engenheiro civil Júlio Cézar Pereira Alvim tem uma forma toda peculiar de narrar a história de Uberlândia que, segundo conta num livro ainda em produção, é fruto de um flerte, seguido de um namoro, que provocou a união de DNAs, dando início a uma gestação e, finalmente, se consolidando no nascimento bem-sucedido.

O flerte da história foi o Tratado de Tordesilhas firmado entre o Reino de Lisboa e a Coroa de Castela, para dividir as terras descobertas e ainda por descobrir fora da Europa, no fim do século XV. Já o namoro é o período do Brasil de fato, como ele chama o marco da chegada de Dom João VI, em 1809. “O Brasil de direito surgiu dez anos depois, quando a Coroa começou a titular as terras para que as pessoas tivessem o direito de uso”, conta.

O ato da união dos DNAs, segundo Júlio Cézar Pereira, é decorrente de um terremoto que devastou a cidade de Lisboa em 1755 e provocou a vinda de famílias portuguesas inteiras para o Brasil Colônia. Uma delas foi a família Pereira, atraída pela corrida do ouro na região de Ouro Preto, onde permaneceu até o início do século XIX. Após receber o título da Sesmaria de São Francisco, João Pereira da Rocha trouxe a família e se tornou o primeiro entrante a fixar moradia no Sertão da Farinha Podre. Com ele, vieram os primos Caetanos, Rezendes e Carrijos, consolidando, portanto, a união dos DNAs. “A gestação de Uberlândia começou nessa corrente migratória. Eles chegaram para implantar sua estrutura de vida e trouxeram a família. Vieram com o ideal de fincar raízes”, diz Júlio Cézar Pereira Alvim, um dos descendentes dos Pereiras.

A partir daí surgem pequenos povoados, sempre no entorno de capelas, culminando com o nascimento do que mais tarde viria a ser chamado de Uberlândia.

Nesse contexto, a Capela da Saudade tem suas particularidades. As terras da família Pereira foram subdivididas em fazendas, entre elas, a Fazenda da Saudade. Essa última nunca foi vendida, sempre foi passada aos herdeiros da família Pereira. “Tem um hábito na família de que as coisas não se vende. Quando você recebe, você segura para passar aos seus descendentes”, conta Júlio Cézar.

 

CRUZEIRO

No início do século XIX foi erguido um cruzeiro no ponto mais alto da Fazenda da Saudade. Era ali que as famílias se reuniam para confraternizar e fazer suas orações. Relatos apontam que a instalação do cruzeiro foi sucedida por uma tragédia na família. Um dos descendentes havia adquirido terras na região de Goiás. Numa das viagens, feitas no lombo de cavalos, em carroças e carros de boi, um dos filhos veio a falecer no meio do trajeto em decorrência de uma enfermidade desconhecida da época. O cruzeiro seria uma forma de prestar homenagem ao falecido, que teria partido sem cumprir uma promessa.

Outro relato é atribuído a um fato sobrenatural, que os mais antigos garantem ser verdadeiro. Na sede da fazenda foi construído um monjolo antes mesmo da chegada da água, trazida através de um rego aberto a partir de um açude de outra fazenda na região. O detalhe é que à noite o tal monjolo funcionava sozinho, deixando os caboclos apreensivos. “A primeira intenção foi um voto para fazer ele parar de socar. Assim que o cruzeiro foi construído, o monjolo deixou de funcionar sozinho”, conta Astolfo Pereira Carneiro, tio de Júlio Cézar Pereira e que durante muitos anos morou na Fazenda São Francisco, próxima à Fazenda da Saudade.

Há ainda uma terceira hipótese de que o cruzeiro teria sido fincado em cumprimento a um voto feito por um membro da família Pereira que pedia a cura a outro parente doente.

Independente da origem, o cruzeiro passou a ser um local de peregrinação e penitências. E também de encontros das famílias. Em meados do século XIX, os proprietários da fazenda construíram um rancho que dava suporte às demais famílias que se reuniam no local. Já no fim do século foi erguida a primeira capela, ao lado do cruzeiro, que passou a concentrar um número maior de religiosos e festeiros da região.

A Capela da Saudade foi construída de frente para o vale, de forma que os proprietários da fazenda pudessem avistar o cruzeiro e a porta da capela sem precisar sair de casa. Por isso, os visitantes que chegam sentido Uberlândia têm como primeira visão os fundos da capela.

 

EVENTOS

Além das missas que acontecem a cada 15 dias, sempre aos sábados às 17h, a capela passou a receber a festa de Folia de Reis, leilões, confraternizações entre famílias e shows sertanejos.

Até hoje, a Capela da Saudade é referência quando se fala em eventos festivos e religiosos na zona rural de Uberlândia. “A capela é conhecida no Brasil inteiro. Muita gente que vem a Uberlândia, também vem fazer uma visita à capela porque viu a divulgação na internet”, conta

José Roberto da Silva, responsável pela manutenção do espaço e também organizador dos eventos na região. A Festa de Santa Cruz, que acontece no início de maio, é a mais tradicional, com 117 anos. No mesmo mês, também ocorre a Festa de Reis, que no último encerramento levou cerca de cinco mil pessoas à Capela da Saudade. Há cinco anos, acontece também a festa de lançamento do rodeio do Camaru, com a escolha da Rainha do Rodeio.

Mas o que mais tem levado público nos últimos anos são os shows sertanejos. Por lá, já passaram nomes conhecidos no cenário nacional como Milionário e José Rico, Rio Negro e Solimões, Cristian e Ralf, Di Paulo e Paulino e, no próximo mês, já tem confirmado o Trio Parada Dura. O show com maior público foi em março, quando 13 mil pessoas acompanharam a apresentação de Gino e Geno. “A capela se tornou conhecida nacionalmente por causa dos grandes eventos”, diz José Roberto, que é genro do atual herdeiro da fazenda. Segundo ele, parte da arrecadação dos eventos é revertida para a manutenção de todo o espaço.

Diante do aumento do público, há a intenção de executar um projeto para melhorar as acomodações, com implantação de estacionamento no entorno, construção de um novo barracão e um poço artesiano. Até hoje, a água consumida no local é retirada de uma cisterna construída na década de 1950. Antes disso, a água chegava até a capela em barris carregados em carros de boi.

No interior da capela há várias imagens sacras que são reverenciadas em orações ou simplesmente admiradas pelos visitantes. Algumas foram repostas nos últimos anos em função de vandalismo e furtos ocorridos. Por causa das ocorrências, a capela passou a ficar trancada durante o dia ou fora de período de eventos. “Às vezes, tem pessoa que quer fotografar e acha ruim de deixar a capela trancada. Mas, infelizmente, tem muito vândalo”, diz José Roberto. “Agora que tombou como patrimônio, precisamos ter mais responsabilidade ainda de mantê-la intacta como está hoje”.

 

REFORMAS

Ao longo das décadas, a Capela da Saudade passou por reformas e transformações. A maior delas aconteceu em 1954, quando houve a ampliação do espaço e a construção de uma varanda onde eram feitas as refeições servidas aos visitantes. Uma grande festa marcou a reinauguração com a presença dos descendentes de várias famílias portuguesas. Foi Astolfo Pereira Carneiro, hoje com 92 anos, quem encabeçou todo o trabalho, feito em sistema de mutirão e que contou com a contribuição financeira de muitos devotos. Astolfo é neto do coronel Antônio Alves Pereira, dono da primeira fazenda de Uberlândia, a São Francisco de Assis, que também fica nas imediações.

Astolfo Pereira foi batizado na Capela da Saudade, e foi numa das festas que aconteceram por lá que ele conheceu sua futura esposa, Maria de Lourdes Pereira, hoje com 81 anos. Ao longo de seis décadas, os dois organizaram vários encontros na capela. O fim de uma colheita ou a limpeza do rego que levava água até a sede da fazenda eram motivos de sobra para comemorar.  “Todo ano acontecia a limpeza do rego. Juntavam uns 300 a 400 homens para fazer a limpeza e sempre terminava com um jantar, com festa.  As mulheres e filhos também iam à noite e as famílias se confraternizavam ao pé da capela”, lembra o sobrinho Júlio Cézar Pereira Alvim.

Dona Maria de Lourdes conta que nem sempre a concentração de gente era programada. Houve situações em que os festeiros quase passaram aperto. Mas, novamente, a religiosidade do local prevaleceu. “Teve uma vez que fizemos comida para nove pessoas e, ao longo do dia, apareceram 45 ao todo. Foi uma bênção esse dia, pois a comida multiplicou e ninguém saiu com fome”, conta Maria de Lourdes.

No final dos anos 1990, seu Astolfo e dona Maria de Lourdes ajudaram em outra reforma da capela. Com o apoio de outros seis casais de festeiros, eles arrecadaram 80 bezerras para a festa de reinauguração. A ocasião marcou ainda a troca do cruzeiro, que já se encontrava bastante deteriorado. O antigo símbolo de madeira deu lugar a outro feito de cimento. Seguindo as orientações do pároco, o cruzeiro velho foi desmontado e enterrado do lado de fora da capela. Segundo José Roberto, lá também foram enterrados alguns “anjinhos”, como eram chamados os bebês e crianças que morriam cedo em função de complicações e enfermidades até então não detectadas a tempo. Como na época não havia cemitério próximo, as famílias optaram por enterrar os restos mortais perto do cruzeiro.

Por todo o simbolismo do sagrado que a Capela da Saudade representa para as comunidades do entorno, bem como a relevante influência na religiosidade na zona rural e seu valor histórico e cultural, ano passado teve início o processo de tombamento do bem, concluído no início de maio deste ano com a homologação da decisão do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artísitico e Cultural de Uberlândia (Comphac) e a publicação do decreto no Diário Oficial do Município.


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