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16/02/2023 às 08h00min - Atualizada em 16/02/2023 às 08h00min

Enxergar a vida

IVONE ASSIS
Nesta semana, o laudo pericial da exumação do corpo do poeta chileno Pablo Neruda, feito recentemente, veio esclarecer, 50 anos após sua morte, que Neruda foi vítima de envenenamento, logo após o adversário político assumir o poder. Com isso, destitui-se o mito da ‘causa mortis’ por câncer e empossa-se o crime político, a barbárie. A poesia se transformou em tragédia. Senti um desalento sem igual. A razão é simples, por todo lado o poder político é motivo de desavenças. É gente consumindo gente como se a “coisa” fosse mais importante que a existência.

Quando uma pessoa assume o poder, quase sempre ela se cega. Então, os princípios amar, perdoar, pedir perdão, dialogar... vão sendo substituídos por ódio, vingança, perseguição... em uma mediocridade desmedida. É como se dissesse que vencer o touro não basta, é preciso sacrificá-lo.

O mundo é tão grande e a vida tão ligeira que acho inadmissível a perda de tempo alimentando sandices. O filósofo Sören Kierkegaard tem uma frase que diz: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre”, porque a criança não guarda ódio e nem perde tempo com tolices. A criança vive, intensamente.

Por falar em criança que sabe viver, lembrei-me da obra “Menino do mato”, de Manoel de Barros”. O poeta escreve: “Eu queria usar palavras de ave para escrever”, na profundeza desse verso vejo a liberdade, o canto do passarinho, a coragem de cortar o vento, e a resiliência. Mais adiante Barros continua: “Ali a gente brincava de brincar com palavras / tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!”. Outra vez, a filosofia poética toma conta do verso. O poeta anuncia a ludicidade, o imaginário, o estágio Infância, e a mãe, por sua vez, com um pé no mundo adulto e outro no mundo materno, e sem ser capaz de “inventar moda”, para tornar a vida mais suave, rompe com o espetáculo criativo dizendo: “formigas nem têm joelhos ajoelháveis e nem há pedras de sacristias por aqui. Isso é traquinagem da sua imaginação”.

O poeta, já velho, segue descrevendo as vivências de menino, como se desbravasse um processo de memórias. Lembra-se de que o Pai achava queria que os filhos “desvissem” o mundo, pois, quem sabe pudessem ver coisas que fossem “úteis”. Nesse contar e poetizar vai nascendo uma função social, até alcançar a velhice. Segundo Alfredo Bosi, em sua obra “Memória e sociedade: lembranças de velhos” (1994, p. 63): “Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade”.

O poeta relembra: “A gente gostava das palavras quando elas perturbavam / o sentido normal das ideias. / Porque a gente também sabia que só os absurdos / enriquecem a poesia”. Então, ele afirma que seu saber era empírico, “não era de estudar em livros. Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos”. Estavam bulhufas para a sintaxe, o que queriam era a beleza da existência, “A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras”. Queriam se perder por entre as “palavras desbocadas. Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento”. Agora relembra de que “Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra”, e escreve: “Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais”. A questão é que crescemos e, na maioria, deixamos o imaginário se afogar na terceira margem do rio. Como escreveu Manoel de Barros “E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era ser pedra!”.

O mundo está carente de experienciar o amor e o respeito à vida. É urgente que se afogue a desmedida humana, para que ninguém se afogue nela. A pedra que encobria a morte do poeta Neruda foi revolvida e trouxe-nos ainda mais certeza de que é preciso desver o mundo, para enxergar a vida.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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