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15/12/2022 às 08h00min - Atualizada em 15/12/2022 às 08h00min

Camuflada

IVONE ASSIS
O campo dos direitos autorais muitas vezes nos deixa feito calangos amedrontados de tanta complexidade que é. Por falar nisso, vale relembrar a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) de 2020 em relação ao poema “O lagarto medroso”, de Cecília Meireles (1964). Quando vivos, os escritores fazem de tudo para ter seus textos publicados em uma crítica, citados em um livro ou coisa parecida. Tudo se resolve com rápidas palavras, mas raramente as portas se abrem aos escritores. Após a morte, há uma tendência de se promover uma louvação à memória, sobretudo no campo educacional, e é nesta hora que chovem os processos, porque aquele que tinha interesse em ver sua obra publicada já não existe, quem assumiu o comando é aquele que deseja colher os louros do escritor, e isso envolve dinheiro, e tudo que envolve dinheiro é complicado.

No caso de "O lagarto medroso", de Cecília, o processo se deu pela publicação integral do poema, o que, olhando isoladamente, implicaria violação de direitos autorais, contudo, trata-se de uma citação da obra “Isto ou aquilo”, assinada pela autora, portanto não pode ser considerado totalidade.

De um lado fica o artigo 7º, caput e inciso I, da Lei 9.610/1998, que protege as criações intelectuais nos suportes, tangível ou intangível. Do outro está o artigo 24, inciso IV, da mesma Lei, que protege o direito moral da autora. No meio fica o artigo 46 da referida Lei 9.610/1998, que defendo o objetivo educativo da citação/publicação. Mas o que acontece de fato é que em meio à guerra pelos ganhos financeiros sobre a criação intelectual daquele que virou poesia e o legado do ensino por meio do poema está a Educação, além de que é impossível analisar um poema caolho, faltando estrofes. Já não temos tantas pessoas interessadas na leitura, especialmente de poesias, se não houver ponderação, cada vez menos haverá interesse pela poesia. Melhor seria que tudo se resumisse na citação da fonte, o que não acontece.

Desse modo, não são poucas as vezes em que um ou outro editor e/ou autor fica parecendo calango, paralisado, camuflado entre as folhagens, receoso em ser descoberto a caminhar no meio do jardim, o que seria um direito e um ganho para todos. Pois, além de conhecer o calango, o espectador/leitor poderia conhecer seus hábitos, costumes, cultura, por fim, poderia mergulhar na mesma fonte que ele, sem medo de se afogar ou ser pego de surpresa. Pior que isso, é a multidão “crítica” que preenche o cenário, todavia não passa da leitura no letreiro, das citações e dos posts. Citar um poema completo, sem restrições, no processo ganha-ganha do marketing, da Educação, da administração... só teriam ganhadores.

Pensemos no poema “Nosso tempo”, de Drummond, o quanto aprendemos sobre o capitalismo industrial, sobre a burguesia, e sobre tantos outros fatos que ilustram o tempo, a fragmentação e a coisificação do homem, por meio do inesquecível Chaplin: “És parafuso, gesto, esgar, / Recolho teus pedaços: ainda vibram, / lagarto mutilado. Colho teus pedaços...”. Pensemos na sociedade e no sistema, quando Cecília Meireles em “O lagarto medroso” escreve: “O lagarto parece uma folha / verde e amarela. / E reside entre as folhas, o tanque / e a escada de pedra. / De repente...”. Por fim, pensemos no sujeito, em seu campo de atuação (seja político ou apolítico, seja privado ou público), quando o escritor hodierno Gilberto Neves, em sua obra “Cenas urbanas e o amor” (2022, p. 35), escreve: “Assim é o calango: passos dissimulados, gestos suspeitos e erráticos. Desconfiado. Enfiado nas frestas e buracos...”.

Nessas três ilustrações sobre o calango, têm-se a imagem da sociedade e do mundo, porém servida, pela Literato, em tira-gosto e cálices, ou seja, exibida somente em trailer, noticiada apenas pela vinheta de divulgação, de forma rasa, passível apenas de “fofoca”, exigindo, portanto, a leitura completa dos poemas e o aprofundamento na pesquisa, para se alcançar a riqueza da literatura ainda camuflada.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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