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04/08/2022 às 08h00min - Atualizada em 04/08/2022 às 08h00min

Quebra dos grilhões

IVONE ASSIS
Aos 5 de abril de 1992, Otto Lara Resende publicava “Palavras inventadas”, na Folha de S. Paulo. Naquela crônica, Otto Lara conta sobre seu prof. Castro Lopes, um defensor da língua portuguesa, que ao se deparar com a palavra “chauffeur” (chofer), “[...] trepou nas tamancas e parou o trânsito”. O cronista informa que o professor criara alguns neologismos, frutos “da caturrice de seu bestunto”, ah, isso, como disse o próprio jornalista, pode até ser “do tempo em que Adão jogava pião”, mas, eu que sou fã de uma palavrinha nova, liguei minhas antenas na hora. Sosseguei quando entendi que a frase é o mesmo que “frutos da teimosia de sua cabeça”. Ri alto. Lembrei-me de uma amiga que, ainda solteira, recebera uma carta, cuja introdução dizia: “No conclave da envergadura desse encontro...”, ela, desesperada, rasgou o papel e disse: “Se este aí procurar por mim, digam que me mudei”.

O léxico é maravilhoso. No universo da literatura, então, nem se fale. Quando fazia pouco tempo que eu havia me mudado para Uberlândia, uma amiga chegou em casa e foi se atirando no sofá, tirando a sandália e dizendo: “Meu Deus, estou esbaforida!”. Mais que depressa, servi-lhe um copo com água, e fui lhe massageando os pés, enquanto perguntava se estava melhor, se queria que eu chamasse o médico, se ela tomava algum remédio... Olhando-me, desconfiada, ela pergunta: “Para que?”. “Para isso que você está sentindo”. Ela quase infartou de tanto rir. Fiquei olhando esquisito, pois não sabia se ria também (e rir de quê?). Ela me perguntou, incrédula: “Nunca ouviu esta palavra?!” Só balancei a cabeça (ou o bestunto), negativamente, e com vontade de jogar o restante da água nela.

Mas, nesse universo de Guimarães Rosa, com sua “enormidade” de vocabulário, o que mais temos é palavra novidade (registrada ou inventada). O papai, que era baiano, tinha muito conhecimento e verbetes próprios. Com ele, o que mais tínhamos era palavra-novidade. Como nos ensina João Guimarães Rosa (1994, p. 436): “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

Lendo “Sou dona de minhas escolhas” (2022), da escritora Maria Divina de Moura Lopes, sobre um homem que deu catalepsia e só achou de acordar quando já estavam com ele a caminho do cemitério, quase matando a todos de medo, pois o único vivo que ficou por ali foi o “morto” e dois bois, que puxavam o carro – o resto saiu perdendo sapatos, mato adentro – deparei-me com uma menina que adorava ouvir histórias, e a mãe, impaciente, dizia: “Essa menina é ‘intrequeta’”. Para a pequena, aquilo soava como algo terrível”, então, calava-se, angustiada. E foi só na vida adulta que entendeu que se tratava de “intequeste” (compulsiva; explosiva).

O regionalismo é um encantamento que beneficia a literatura, ao mesmo tempo em que vai nos desafiando na cultura dos povos. Quem não se lembra de Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e as bizarrices de João Grilo, Chicó e Taperoá inteira, com seus jeitos e trejeitos? Com seus dialetos e desafetos? Suassuna, o homem que não suportava o dialeto de aeroporto, povoou nosso imaginário com suas construções literárias.

Como escreveu Antônio Candido, referindo-se aos escritos do Sertão: “Da ambigüidade que desde o início marcou o nosso regionalismo; e que, levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado, acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais geral e de certo modo mais própria do país” (CANDIDO, 1975, p. 116).

Nesta semana, assistindo a um vídeo de comicidade de Jackson Antunes, ele solta a palavrinha “digitório”. Eu, que sou fã da Boneca Emília, vi a urgência cruzar à minha frente, mais que depressa, indaguei-lhe de que se tratava o tal vocábulo. Pacientemente, o ator-poeta clareou-me o quengo, dizendo se tratar de adjutório (ajuda, auxílio), muito usual lá “pras bandas” de Janaúba.

A palavra é a ponte que liga o ser ao saber, é a ferramenta que rompe com a ignorância... é a quebra dos grilhões.


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