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28/07/2022 às 08h00min - Atualizada em 28/07/2022 às 08h00min

Barquinhos no mar

IVONE ASSIS
Enquanto o jornalista noticiava sobre um “forte” redemoinho em uma cidade de Goiás, peguei-me a lembrar de minha infância. Bastava ver o poeirão levantar, que vínhamos correndo com os cabos de vassouras e entrávamos dentro daqueles redemoinhos e fincávamos pés e cabo de vassoura no chão, enquanto desafiávamos a Natureza, para ver se era capaz de nos fazer voar. Penso que só de raiva da nossa teimosia, logo o funil de terra se desfazia ou se desviava de nós e seguia seu curso. Creio que até Deus achava graça daquilo, porque a única evidência que constatávamos, infalivelmente, era a sujeira absoluta e a “transformação” de crianças em “ouriços”, sobretudo quando tinham um cabelo arrepiado como o meu.

Decepcionados com o fim da aventura, dali partíamos para qualquer outra brincadeira mais amena, como equilibrar sobre o muro de taipas, jogar bete, brincar de esconde-esconde... ou outra aventura qualquer. De qualquer modo, a roupa já estava suja ao limite, o cabelo nem se fala, e o banho seria inevitável. Alguns meninos ganhavam um aquecimento no “couro”, para não fazer aquilo mais, e aprender a valorizar o serviço das mães, que penavam para lavar as roupas e as orelhas da molecada. Aquilo acendia uma relação de ódio entre crianças e varinhas das goiabeiras, que durava até a frutificação da planta, depois, quem é que resiste a uma goiaba madura?

O pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, em sua obra “A criança e o seu mundo”, afirma que: “A criança adquire experiência brincando. A brincadeira é uma parcela importante da sua vida. As experiências tanto externas como internas podem ser férteis para o adulto, mas para a criança essa riqueza encontra-se, principalmente, na brincadeira e na fantasia. [...] A brincadeira é a prova evidente e constante da capacidade criadora, [... a] vivência (WINNICOTT, 1982, p.163)”.

Quando vejo crianças trancafiadas em casa, alienadas a celulares, televisão ou outro eletrônico qualquer, sinto uma tristeza imensa, porque essas crianças estão perdendo a melhor fase de suas vidas, grudadas em bobagens que as impedem de exercitar, ou explorar sua capacidade de enfrentamento. Pior ainda é quando crianças se esquecem de que são crianças e passam a viver como se fossem adultos, com suas perdições. O prejuízo para quem queima etapas na vida é imenso, seja na saúde física ou mental. A infância saudável é a ponte para a realização da vida adulta.

O livro infantil é um grande aliado da boa formação da criança. E quanto mais lúdico, melhor. Ler para uma criança é um ato de amor. Ler poesia para a criança é encantamento. Quem é educado sob o exemplo da boa leitura, está um passo adiante daquele que foi privado da leitura.

Para Afonso Romano de Santana (2004, p. 25), “a poesia sensibiliza qualquer ser humano. É a fala da alma, do sentimento”. Vejamos o poema “O Menino Azul”, de Cecília Meireles, que diz: “O menino quer um burrinho / para passear. / Um burrinho manso, / que não corra nem pule, / mas que saiba conversar. // O menino quer um burrinho / que saiba dizer / o nome dos rios, / das montanhas, das flores, / – de tudo o que aparecer. // O menino quer um burrinho / que saiba inventar histórias bonitas / com pessoas e bichos / e com barquinhos no mar [...]”.

Esse poema incrível, de Cecília, traz um burrinho, que poderia representar a criança impedida de estudar, mas prefiro relacioná-lo ao adulto que não tem tempo para a criança. Chama-o burrinho, para que o diminutivo denote o carinho da criança para com esse adulto. É uma comparação no sentido de o adulto se esquecer de que a vida demanda trabalho e alegria, mas o trabalho não pode cegar e consumir o adulto. A criança quer ouvir histórias e brincar.

Para que se viva a infância, é preciso explorar os saberes sem jamais prejudicar o bem viver. A criança quer sentir e compartilhar a emoção. A vida pede que se construa e jogue barquinhos no mar.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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