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07/07/2022 às 08h00min - Atualizada em 07/07/2022 às 08h00min

Encontro de amigos

IVONE ASSIS
O poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade, diz: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé, / comprida história que não acaba mais. // No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom [...]”. Esse poema me remeteu ao encontro de segunda-feira, com o escritor Evandro Valentim de Melo, na charmosíssima cafeteria Crioula Café, ali no Guara II, em Brasília. 

É como se ouvisse Álvaro de Campos a dizer, em seu “Passagem das horas”: “Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades / Acessíveis à imaginação / Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer, / Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira, / Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi”. O tempo parecia ter parado, para que vivêssemos somente aquele instante de degustação do Crioula. Sentados à mesa, aquele grupo de amigos compartilhava o “huummm”, que parecia exalar o sabor e cheiro do café coado, divinamente servido no bule; ao lado, um capuccino artisticamente preparado pela barista, e o incomparável bolo de laranja, com a deliciosa calda também de laranja a escorrer sobre a fatia. Ao lado, o livro “Só imaginação”, de Paulo Sérgio, compunha o cenário, e a imaginação, claro. Aquele café nos convidava às histórias, aos causos, aos risos... Todos queriam falar e rir, ao mesmo tempo, mas o que se ouvia era apenas “huummm, que delícia de café”.

Aquela magia Crioula Café atravessava a imaginação, formava o paladar e se convertia em poema... poemas imaginários. Como muito bem escreve José Saramago, em “Retrato do Poeta Quando Jovem”: “Há na memória um rio onde navegam / Os barcos da infância, em arcadas / De ramos inquietos que despregam / Sobre as águas as folhas recurvadas. // Há um bater de remos compassado / No silêncio da lisa madrugada, / Ondas brancas se afastam para o lado / Com o rumor da seda amarrotada. // Há um nascer do sol no sítio exacto, / À hora que mais conta duma vida, / Um acordar dos olhos e do tacto, / Um ansiar de sede inextinguida. // Há um retrato de água e de quebranto / Que do fundo rompeu desta memória, / E tudo quanto é rio abre no canto / Que conta do retrato a velha história.”

Embora a rua sofresse a pressa frenética dos motoristas, e as passadas afoitas dos transeuntes... pessoas que, por algum motivo, não podem ou não sabem que a vida pede calma, porque basta-nos que vivamos o instante, foi assim, desenhando “o cheiro das árvores”, como se fôssemos Manoel de Barros, que a memória foi evocada, para recriar novas histórias, as quais hão de romper “o silêncio das pedras”, sempre que a imaginação for acionada, especialmente se for sob o calor de um cafezinho passado, porque a história e a imaginação, o café e a amizade... andam sempre juntos.

Lembro-me de meu pai, levantando-se nas madrugadas para preparar o almoço e o café, para seguir para o árduo trabalho na roça; lembro-me de meu avô, já com seus 100 anos de idade, preparando o cafezinho, a que ele apelidava de Jamel, para zarparmos para o rio, em busca de uma boa pescaria. Quantas histórias boas, sob o calor do delicioso cafezinho preto.

Quando crianças, colocamos o rio no bolso; quando adolescentes, o rio vai para os poemas; já adultos, o rio mora nas histórias; e quando envelhecemos, muitas vezes, o rio habita o canto dos olhos. E o café, companheiro fiel, está sempre por ali, fazendo companhia, preenchendo as ausências, emendando histórias e inventando moda. Foi nesse esconderijo de saudades que o Crioula, com sua Matula de carne seca e cuscuz presenteou nossa tarde, naquele encontro de amigos.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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