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14/04/2022 às 08h00min - Atualizada em 14/04/2022 às 08h00min

Para se tornar poeta

IVONE ASSIS
Por melhor que seja a plantação de trigo, o joio sempre dará um jeito de se inserir em seu meio. Geralmente, eles crescem juntos, para que o trigo não seja penalizado, mas, na hora da colheita, é preciso separá-lo com cautela, para que a boa ceifa não seja contaminada, uma vez que o joio é tóxico. Em dias de tolerância inflamada, é fácil notar os joios, mas também é fácil que, impulsionados pela fúria, alguns trigos se contaminem.

Outro dia, enquanto estava a ler “Os asnos por testemunhas”, foi passando um filme em minha mente. Fiquei a pensar na discrepância social, e na fala de uma pessoa muito bem-sucedida, que, ao ser questionada sobre a simplicidade em que vive seu irmão de sangue, ela respondeu: “Nem todos nascem para brilhar. Alguns nascem para ser pobres...”. Naquele momento, ficou martelando em meu quengo o conceito do que poderá ser a riqueza, pois, não é possível que riqueza seja somente o conjunto de dinheiro e bestialidade.

Outro filme que desfiou em minha memória foi a política de meu país, sobretudo quando o assunto é Segurança Pública. No afã de agarrar o poder e obter vantagem financeira, líderes e sociedade têm se promiscuindo, servindo de incentivo para a propagação do crime e da impunidade. Nos noticiários policiais são estampados os ladrões e criminosos que se espelham nos ladrões e criminosos iluminados pelos holofotes da oportunidade, respaldados pela lei. Cada qual em sua organização, a diferença está na tal oportunidade, e o ponto comum encontrado é o absurdo. O ódio tem se alastrado, na raça humana, de modo tão bestial, que passou a ser tolo aquele que ama, aquele que ainda acredita na bondade. Como não bastasse tanto ódio impetrado, ainda um “líder”, fazendo uso de sua influência, foi a público incitar a propagação da criminalidade... Não há como mensurar tais desmandos. De um lado, os réus confessos são temidos, do outro, os de colarinho branco, são venerados.

Os primeiros, às vezes, passam por períodos de reclusão, às vezes, depõem e são liberados pela porta da frente; os outros, vão à público, exigindo que a justiça desmacule sua imagem, como se isso fosse possível. Ouvindo um jovem do primeiro grupo dizer: “Eu não gostaria de estar nesta vida, mas não tenho alternativa”, fiquei “caçando” os efetivos projetos sociais, especialmente os que antecedem os de reabilitação, mas a única coisa que encontrei foi a triste poesia, a chorar sua insignificância no mundo dos iletrados. Peço licença para ilustrar com a poética do escritor, porto-alegrense, Ricardo Silvestrin, em seu poema “O menos vendido”, que diz: “Custa muito / pra se fazer um poeta. / Palavra por palavra, / fonema por fonema. / Às vezes, passa um século / e nenhum fica pronto. / Enquanto isso, / quem paga as contas, / vai ao supermercado, / compra sapato pras crianças? / Ler seu poema não custa nada. / Um poeta se faz com sacrifício. / É uma afronta à relação custo-benefício”.

O sociólogo Sérgio Adorno (USP), especialista em estudos sobre a violência, ao longo de sua literatura, não deixa dúvidas sobre o farto crescimento tanto na quantidade como no grau de crueldade, quando o assunto é a violência no Brasil. A sensação é de que a impunidade promove esses dissabores. Em “Homens em tempos sombrios”, Hanna Arendt (p. 133) vai dizendo: “É fácil mostrar o absurdo dos argumentos de nossos adversários e provar que sua inimizade é infundada. O que se ganharia com isso? [...], coloquei o que devemos querer fazer [...]. Minha intenção foi a de indicar o problema. Não é por minha culpa que não conheço a solução”.

Estamos fartos de violências, de “heróis”, basta de gentes armadas de “cospe-fogo”, queremos pessoas armadas de palavras sábias, armadas de amor, armadas de esperança, armadas de conhecimento... Texto sem interpretação é violência contra o pudor. Que soltem bombas poéticas, e todos sejam capazes de interpretar as parábolas. Que o menos assistido deixe de ser versos e estrofes, para se tornar poeta.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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