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27/01/2022 às 08h00min - Atualizada em 27/01/2022 às 08h00min

Na barriga de cada um

IVONE ASSIS
O mundo vai se acostumando aos problemas, vai se encrustando neles e vice-versa, de modo a se homogeneizar. Com isso, as pessoas desabrigadas, os moradores de rua, os dependentes químicos, os famintos... e outros, vão sumindo do quadro de problemas sociais para comporem os cartões postais, sobretudo das grandes cidades. Então, quando surge um novo problema, este invade a atenção do mundo... o sistema suga o que dá para se beneficiar da situação e, quando este é incorporado pela sociedade, cai em esquecimento, para que se vá em busca de outro “atrativo”.

Bill Gates, ao ser questionado pela CNN, se iria se juntar à corrida pelo domínio espacial, respondeu com sensatez, que tudo isso é muito bom, contudo, as pessoas ricas “Não podem ou não deveriam querer consumir tudo sozinhas", pois há problemas mais essenciais no momento, como a erradicação da malária e da tuberculose. E eu acrescento aqui, a necessidade da erradicação da fome. Pois, uma vez erradicadas essas “três” enfermidades, a humanidade estará vacinada contra possíveis novas pandemias. Melhor é priorizar o que está à nossa frente, pois, desde que a humanidade existe, a fome tem sido mera moeda de troca. 

Enquanto nos estarrecemos, diariamente, com o horror da Covid-19, esquecemo-nos de olhar para a fome, que é muito mais avassaladora. Segundo a plataforma de estatística worldometers, são mais de 859 milhões de pessoas desnutridas no mundo, e só neste 2022, mais de 780 mil pessoas perderam a vida em decorrência exclusiva da fome. Destas, somente nesta quarta-feira (26), mais de 11 pessoas deixaram de respirar, graças à avassaladora fome. Aliada a essa catástrofe, vem a falta de água potável, com um número estarrecedor. Parece loucura, mas a maior causa-morte que há no mundo é a pandemia chamada fome. Algo inconcebível, se observarmos o valor do fundo partidário de nosso país, a “guerra” espacial, a somatória dos salários e benesses dos governantes do mundo... e outras futilidades.

O escritor português, Saramago, em seu poema “Fala do Velho do Restelo ao Astronauta” (1982, p.76), vai denunciando: “Aqui, na Terra, a fome continua. / A miséria, o luto, e outra vez a fome. / Acendemos cigarros em fogos de ‘napalme’ / E dizemos amor sem saber o que seja. / Mas fizemos de ti a prova da riqueza, / E também da pobreza, e da fome outra vez. [...]”. Em seu poema, Saramago vai denunciando os percalços enfrentados pelo homem e, igualmente, promovidos pelo mesmo homem, não deixando dúvidas de que na sociedade impera-se o egoísmo, a cobiça e a arrogância. O velho do Restelo se desabafa com o “navegante” do espaço, apontando-lhe sobre a (des)razão da ciência, a qual avança a passos largos rumo ao novo, esquecendo-se do velho. Parafraseio esse avanço como o internauta que se preocupa em abrir o maior número de páginas possível, sem se dar ao trabalho de ler os sítios já abertos. Move-se tecnologias, terras e mares, mas “Aqui, na Terra, a fome continua, / A miséria, o luto, e outra vez a fome”, porque instituições sociais, governos e homens... andam cegos à sua própria existência. Uma sociedade alicerçada na ganância e no poder não é capaz de enxergar aquele que tem fome. O mundo, em seu isolamento, carece de urgente reforma psicológica. Igual à conquista espacial, foi a conquista marítima, em que Camões (2006, p. 120) poetisa em “Os Lusíadas” (1572): “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade, a que chamamos fama! [...] Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldades neles experimentas!”.

A fome tem pressa, não piedade. É preciso entender que a cidadania engloba dignidade humana, e esta, por sua vez, tem fome de arroz, feijão e água. Assistir com passividade, pais venderem seus órgãos para colocarem comida na barriga de seus filhos, é promover a morte de seu próximo. É na perversidade da fome que os olhos se fecham. Sem comida não há ciência que promova humanidade, nem progresso, nem conquistas, nem acalanto. A desigualdade mora na barriga de cada um.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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