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04/01/2022 às 08h00min - Atualizada em 04/01/2022 às 08h00min

Pro dia novo encontrar

ENZO BANZO
"Nada em rigor tem começo, e coisa alguma tem fim, já que tudo se passa em ponto numa bola", foi João Guimarães Rosa quem escreveu abrindo um dos contos de "Estas estórias", livro póstumo que nos leva a pensar que fim não há ou houve. Há fins de ciclo, a roda gira em novos rumos na espiral. Ano novo, pensamos sempre nessas coisas, situamos nesse ponto uma nova demarcação do nosso tempo por aqui. Há o que retorna no giro espiralado, e nossas forças se voltam para que o renovado seja sempre melhor. Depois de anos tão difíceis no mundo todo, e no Brasil com nefastas particularidades, não há como não mirar na esperança. O dia novo virá, impávido.
 
Sendo o assunto o começo que é sempre recomeço, aproveito para comentar sobre um retorno muito bem vindo, que faz parte da minha história.
 
Há vinte anos eu era um jovem cabeludo de violão na mão, as pessoas ficavam meio incrédulas porque o mesmo que fazia esquisitices no palco do PdeB (futuro Porcas Borboletas), tocava junto de crianças e jovens muito jovens, no então chamado Projeto EmCantar: quietinho, concentrado e, quase sempre, segurando o choro para não errar, arrepiando o corpo todo quando o arranjo virava para a entrada catártica do coro.
 
Pois o hoje Grupo EMCANTAR acaba de disponibilizar um conjunto de sete gravações que fizemos naqueles tempos, e que ficaram guardadas como numa caixinha de música que esperasse o momento certo para soar e ser descoberta. Aquilo que chamávamos "terceiro CD", pois sucederia o segundo, "Mutirão", está finalmente nascido e batizado: "Realejo Encantado".
 
Eram canções obrigatórias nas apresentações que fazíamos, obras do repertório da música popular brasileira que contavam o que o grupo queria cantar para encantar. As crianças daquele tempo hoje estão na casa dos 30; o canto, a música e cada verso, entretanto, fazem total sentido no presente do nosso agora.
 
Logo de início, soa um apito de trem simulado nas percussões; a sanfona e o violão no bloco de acordes recriam o ritmo da locomotiva; é o "Trenzinho do Caipira", música de Heitor Villa-Lobos com letra do poeta Ferreira Gullar. Como é apropriada para esse aqui e agora da esperança: "lá vai o trem sem destino / pro dia novo encontrar"; esse trem foi aportar logo quando precisamos tanto dessa evocação. A letra se repete, e invade a paisagem sonora todo o poder de transformação da coletividade: percussões, violões, baixo, sanfona e o coro de vozes, muitas vozes. Abre caminho. Na espiral do tempo, revejo a gente ali, os cabeludos da banda, a meninada que cantava e tocava, o Marquinho pulando feito criança na frente do coro. Mas vejo também a gente agora, rumando, remando, pela serra, pela terra, pelo ar, dia novo.
 
Dentre as belas canções, uma das que mais me comove é "Dança dos meninos", de Milton Nascimento e Marco Antônio Guimarães (mentor do grupo Uakti). No meio da dureza do presente, mexe muito com a gente ouvir a voz da então menininha Aline derramando ternura: "te acorda, é a dança, o momento, a roda que vai". É uma canção de movimentos harmônicos circulares meio inesperados: cria uma espécie de transe, chega ao ápice quando entra o coro da dança da meninada. Anjo suave.
 
Transe, transe mesmo, alcançamos na faixa final, a conhecida "Canto do povo de um lugar", de Caetano Veloso. Diferente de todas as outras versões, aqui a harmonia gira em torno de um único acorde, que funciona como centro do círculo: é o princípio das músicas modais, pré-modernas. O único instrumento é a sanfona ritualística de Christiano Costa. Entra a voz do Marquinho, quase ninando: "todo dia..."; e na estrofe seguinte, a surpresa arrepiante, a segunda voz do amado e saudoso Pena Branca: "a terra cora e a gente chora"; roda o círculo, chegam as crianças, "e a gente dança". É difícil não ir para um outro lugar enquanto se houver; quando voltamos ao nosso ponto da espiral, estamos melhores, renovados, revividos; podemos seguir a vida imbuídos da força, fé e esperança; tocar o nosso trem, pro dia novo encontrar.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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