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27/11/2021 às 08h00min - Atualizada em 27/11/2021 às 08h00min

Meditações do Quixote

EDMAR PAZ JUNIOR
Ortega y Gasset foi um escritor e filósofo espanhol, certamente entre os maiores do século XX, que soube adequar sua filosofia ao que vemos no real. São tantas frases e ideias marcantes nessa grande obra de arte que o seu pequeno tamanho não revela o impacto que causa em quem a desfruta. Como ele mesmo diz logo na apresentação, “trata-se, pois, leitor, de uns ensaios de amor intelectual”, revelando que discorrerá sobre alguns curtos temas que irão confortar a mente daqueles que buscam leituras de prazer em bons livros. 

Mas, vou tentar fugir um pouco dos lugares comuns deste livro, como suas duas principais passagens: “Temos de buscar nossa circunstância, tal qual ela é, precisamente no que tem de limitação, de peculiaridade: o exato lugar na imensa perspectiva do mundo; não nos determos perpetuamente em êxtase frente aos valores hieráticos, mas sim conquistar para a nossa vida individual o posto oportuno entre eles. Em suma: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”, e o ”Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo não me salvo eu”, em que Gasset tenta nos mostrar a importância de buscar um sentido no que está a nossa volta, justamente para possamos reaproveitar tudo o que nos acontece em favor de um propósito que definimos para nossa vida. Essas são ideias poderosíssimas quando as entendemos. Mas, continuemos o livro.

Não vou fazer na ordem sequencial do autor, mas apenas por mero capricho, uma sequência minha. Começo com “para quem o pequeno não é nada, o grande não é grande” que traduz não só o conceito de apreciar os pequenos detalhes, o que consequentemente nos permitirá enxergar as grandes obras, mas sendo algo que também gira em torno de encontrar um “sentido” no dia a dia. 

Por exemplo, como enxergamos e utilizamos o nosso Tempo. Se não aprendermos a apreciar cada segundo que vivemos, perdemos a oportunidade de contemplar a existência como um todo, de modo que a vida passa “no automático”. E continua um pouco mais a frente, “Mas estamos seguros de que o defeito e a esterilidade provêm do nosso olhar”, colocando sob nossa responsabilidade o dever de aprender a “ver”. 

Não é um mero hábito isolado esse “aprender a ver”, pois o ato de buscar sempre o que há de melhor se torna um ciclo, culminando quase sempre com a “verdade” brotando em nosso caminho, como ele maravilhosamente expressa que “não pode haver algo melhor a não ser onde há outras coisas boas, e somente aos interessarmos por estas o melhor assumirá o seu lugar”. Assim, gosto de pensar que é preciso estar rodeado de coisas boas, cuidar do nosso ambiente em que estamos, para que aquelas se impregnem em nós, quase como um conceito de osmose mesmo.

Quando Gasset se propõe a buscar a raiz da inspiração de Cervantes para a produção do clássico Dom Quixote, dizendo que “o segredo de uma obra de arte genial não se entrega desse modo à invasão intelectual. Dir-se-ia que resiste a ser tomado pela força, e só se entrega a quem quer”, me faz lembrar de uma passagem em Eclesiástico 4, versículos 11 e 17-18, que replico: 

“A Sabedoria educa os seus filhos e cuida daqueles que a procuram. (...) Primeiro, ela o conduzirá por caminhos tortuosos, causando-lhe medo e tremor, e o atormentará com sua disciplina, até que o homem confie nela e até que ela o tenha provado com suas exigências. Depois, ela o reconduzirá pelo caminho reto, o alegrará e lhe manifestará seus segredos”. 

Acredito que se trata de um conceito muito semelhante, uma vez que pouco antes diz que “As coisas não nos interessam porque não encontram em nós superfícies favoráveis onde refratar-se, e é necessário que multipliquemos os feixes de nosso espírito a fim de que inumeráveis temas cheguem a feri-lo”. 

Aqui, fica claro que quando diz sobre as coisas que não nos interessam se refere àquilo que é “bom”, às coisas boas que não chegam até nós, precisamente porque não nos permitimos ser abertos a isso. Não podemos negar que somos imensos receptáculos e que absorvemos tudo ao nosso redor, e justamente por isso, a atenção sobre o que lemos, assistimos e ouvimos deve ser constante, ainda mais diante da insanidade dos dias atuais.

Eu acabaria por transcrever o livro todo, caso quisesse colocar o que acredito ser mais “importante”. Contudo, ainda existe uma outra ideia que emana da obra, talvez a mais poderosa, porque envolve bem mais que um princípio, envolve o sentimento que move o mundo, o Amor. Não é a sensação de querer “ser completo” pelo outro, mas sim “impulsionar” o outro em seu processo de crescimento, que prescinde de qualquer resenha ou explicação: “Há dentro de toda coisa a indicação de uma possível plenitude. Uma alma aberta e nobre sentirá a ambição de aperfeiçoá-la, de auxiliá-la para que alcance essa plenitude. Isto é amor – o amor da perfeição do amado”. José Ortega y Gasset é um autor que merece figurar nas listas de leituras.

Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.




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