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15/10/2021 às 08h02min - Atualizada em 15/10/2021 às 08h02min

​Do outro mundo

WILLIAM H STUTZ
Tinha tudo para ser mais um dia normal e moroso como qualquer outro. Aos poucos a rotina das ruas tomava seu rumo. Os primeiros ônibus já se faziam ouvir e sentir. Cheiro forte de fumaça. Crianças em uniformes coloridos tagarelavam rua acima rumo à escola. O primeiro sinal já havia tocado, mas muitos, na verdade quase ninguém, havia se tocado disso.

Conversas de namoricos, último capítulo de novela, reality show, paredão.

— E a nova música do NX Zero e do Justin Bieber, alguém já baixou? No site oficial está liberada por uma semana. Você tem? Ah, me passa, por favor, me manda pelo MSN pelo menos o link! Deixa de ser "ridica", também você vai ver, tenho uma coisa para te contar, mas não conto por nada, nem sob tortura, nem se me proibirem de ver o show do Belo. Como se vê, só assuntos da mais alta relevância, passíveis de mudar os rumos da humanidade, os destinos de povos inteiros, impressionante a relevância e profundidade das prosas.

Logo a sirene da escola tocou pela segunda vez. Debandada geral das maritacas deixando para trás nuvens de papéis de bala e chicletes. Agora, como disciplinadas abelhas jataí, em organizada e silenciosa fila indiana, sérias, mas com sorriso maroto e troca de olhares de cumplicidade, adentravam uma a uma ao sagrado templo do saber. A escola e toda chatura que pode ela representar para um adolescente às turras com seus conflitos e pressa de viver, era uma gigantesca poita, uma âncora a prender o alçar voo. Férias, como podem estar tão longe e durar tão pouco!

O que poucos, ou melhor, ninguém podia imaginar, era que na outra esquina, bem próxima à escola, um ser preparava para a mais importante missão de sua vida. Havia ficado em permanente vigília e em postura de observação por longos nove anos. Durante todo este tempo ficou a observar costumes e hábitos dos habitantes desse pequeno planeta, onde, depois de séculos de pesquisa, os seus mais brilhantes cientistas haviam detectado sinais de vida inteligente. Bom, este conceito de inteligência mudou um pouco, pois nove anos ouvindo as conversas que passavam todas as manhãs e tardes pela calçada de seu esconderijo provocaram uma mudança radical em sua maneira de ver os seres desse planeta. Personagens com nomes estranhos recheavam agora seus relatórios diários e eram vistos como potenciais ameaças à cultura e sobrevivência de seu povo.

Para azar seu os pesquisadores de seu planeta haviam observado um canil aqui na terra e, portanto, deram-lhe corpo de cachorro para se misturar aos nativos. Só quando chegou se deu conta do erro e teve que adaptar-se ligeiro. Além do andar de quatro, não fora avisado que seria meio de transporte e alimentação para seres minúsculos, porém ávidos, que logo descobriu chamarem-se pulgas e carrapatos.

Arrumou um dono pouco chegado às atenções, que gostava de se embriagar logo cedo e só parava com a branquinha à noite, afundado em profundo sono. Assim ficava fácil, se por acaso cometia a perigosa falha de falar ou agir como ser de outro mundo e seu dono percebia, aliás aconteceu com frequência nos primeiros anos de vida por essas bandas, e saía aos berros a contar para todos que seu cachorro era um ET, isso não passava, para os outros, de delírio de bêbado e felizmente não era levado a sério.  O lugar e o terráqueo eram perfeitos para seu disfarce.

Nove anos de observação só o fizeram ficar mais e mais confuso. Quem era o verdadeiro representante dessa estranha raça? Era aquele senhor barbudo de estranho falar e que por anos e anos pouco depois de sua chegada aqui, frequentava os noticiários sem dar trégua? Mas ele sumiu de repente... Seria aquela senhora loira que todas as manhãs conversava com um papagaio e tinha estranha e gutural risada? Seria aquele outro com plástico sorriso que toda semana jogava aviõezinhos de dinheiro para povo? Ah, isso sem contar aquele casal bem afeiçoado que falava do mundo e do tempo e ninguém dormia antes de ouvir o seu sonoro e inconfundível “Boa noite”? Povinho estranho e confuso esse da terra.

Tomou grande impulso, saltou o muro e sem pestanejar seguiu direto para a casa da tal. Lá chegando, e alguns latidos depois, eis que surge o potencial contato com essa tão confusa raça. Sorridente ela aproximou o rosto de seu focinho e, sorridente, com a mão em seu queixo perguntou-lhe o que o lindo cão queria. Achando que sabia falar balbuciou entre roncos, rugidos e sons inteligíveis:

— Por favor, leve-me ao seu líder.

Só que no enorme esforço ao falar, coisa que não fazia nunca, acidentalmente mordeu os lábios da moça que, numa mistura de espanto e terror, pois conseguira entender alguns sons humanos saírem daquela boca canina, pôs-se a gritar ao sentir o calor do sangue a correr-lhe pelo queixo. Também assustado desapareceu no mundo e buscou refúgio em local ermo, de onde, após contato com a nave mãe, suplicou resgate e se foi em desgraça, sem cumprir a missão para qual fora designado, mas com o firme propósito, com mais das absolutas certezas, de que jamais voltaria a este louco e esquisito planeta.

Enquanto cruzava linha espacial em traçado rumo, conseguiu captar uma última transmissão de seu antigo dono. Este, cercado de homens fardados bradava aos quatro ventos:

— Não falei, não falei, “Meu cachorro é de Júpiter e estava apaixonado pela vizinha. Ela sorriu para ele e o cão tentou dar um beijo”, era isso, eu sabia o tempo todo e ninguém acreditou! Agora quero ver quem vai me dar outro cachorro do outro mundo.  A louca sanidade dos embriagados.



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