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05/10/2021 às 08h00min - Atualizada em 05/10/2021 às 08h00min

A faixa 1 de Caetano

ENZO BANZO
Formei-me ouvinte de canções no tempo dos discos. Para além da música de trabalho (aquela mais conhecida, destinada às rádios e por vezes trilha de novela), sempre gostei de colar ouvidos e olhos no conjunto da obra concentrada no giro do álbum.

A audição, hoje em dia, é mais fragmentada. Quem liga para a ordem do disco? Aliás, quem precisa lançar uma canção num disco? Não é assim que funcionam as plataformas de música, redes em que vale mais o fluxo dos lançamentos do que os grandes blocos de faixas. E não digo isso por saudosismo, do tipo "antigamente era melhor": no tempo dos discos de 78 rpm (primeira metade do século XX), só havia duas faixas, uma em cada e lado. Álbum é uma coisa que só se consolidou nos anos 1960, e foi mudando à medida que variavam os suportes.

Foi nessa década de 60, quando nasciam os álbuns, que surgiu Caetano Veloso no mundo dos discos. A faixa de abertura de seu primeiro LP solo dá o tom de sua entrada: "Tropicália" é uma canção-manifesto, edificação do retrato de um Brasil cheio de contradições, repleta de referências girando junto aos signos daquele tempo: aviões e caminhões, Brasília monumental, Roberto Carlos, "A banda" do Chico, uma lista "monstruosa" como já chegou a dizer o próprio autor.

Ali estava a primeira faixa 1 de Caetano, que anunciava não só um novo olhar sobre o Brasil e sobre as canções, como também um procedimento que o compositor retomaria na maior parte de seus álbuns: a abertura por meio de uma canção-manifesto, janela de conexão com o mundo em que se insinua; letras longas e repletas de cruzamentos de referências, aproveitando os ouvidos ainda descansados de quem ali se conecta.

Com as mudanças no mercado, a tendência atual é iniciar o lançamento do disco por singles, faixas que prenunciam o que virá. Abrindo ou não o álbum, o primeiro single é como uma faixa 1. É assim que "Anjos tronchos", single que Caetano acaba de lançar dando a largada para um novo trabalho, filia-se ao conjunto de suas longas, críticas e apuradas faixas 1, como foi "Tropicália" no primeiro disco, como foi "A bossa nova é foda" em Abraçaço, o último até aqui (na qual, ao invés de anjos, temos um bruxo).

Abrindo um novo trabalho, "Anjos tronchos" entra na barca de canções como "Fora da ordem"(Circuladô, 1991), "Podres Poderes" (Velô, 1984), "Perdeu" (Zii e Zie, 2009), "Haiti" (Tropicália 2, com Gil, 1993), "O estrangeiro" (Estrangeiro, 1989), e por aí vai, fique à vontade para montar sua playlist de faixas 1. Ouça aos poucos, pois, no conjunto de cada álbum, a sequência das faixas costuma equilibrar a densidade poética e ultraimagética do petardo inicial.

Ouvir "Anjos tronchos" sob esse chave ajudou-me a compreender o novo canto: crítica da contemporaneidade cravada no chão das referências, e ali está o "anjo torto" de Drummond, parodiado nos primeiros versos, voando quase cem anos depois na estranha virtualidade do algoritmo. A estrofe inicial de Caetano toma para si a estrutura poética do primeiro poema do livro de estreia de Carlos: "vai ser gauche na vida", "vai ser virtuoso no vício". Uma faixa 1 é uma declaração de princípios e contraprincípios. Drummond já sabia.

De "Tropicália" a "Anjos tronchos", passando por "Podres poderes", "Haiti", "Fora do ordem", há que se louvar a aguda leitura crítica e poética de Caetano no tempo em que vive ao longo dos tempos, vislumbrando o presente sob o chão do passado, antenado no futuro. Meio século após a "Tropicália" cantada nas sombras da ditadura, o que dói, hoje, é abismar-se ante o terror das trevas dos macabros líderes e de seus seguidores. Sonhemos poemas como jamais.

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