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23/09/2021 às 08h00min - Atualizada em 23/09/2021 às 08h00min

Quando a saudade bate à porta

IVONE ASSIS
Há dias mais fáceis e dias mais delicados, o importante é sempre mantermos a ética, a serenidade e o amor. Nesta semana, enquanto eu alinhava meus pensamentos, fui ajudar a embalar alguns copos e outros pertences de uma amiga muito querida, cuja presença nos foi roubada pela Covid-19. Enquanto ia repassando aqueles copos, e taças, e canecas... seguia revendo as cenas em que, algumas vezes, à mesa, conversávamos, comíamos, e remontávamos o passado. Agora, estranhamente, eu trazia a reminiscência, porém sobre ela, a amiga. Foi muito difícil. Por mais que o coração quisesse entender, aquela ausência ardia nos olhos. Parte de mim queria lembrar, parte queria esquecer, como se assim pudesse me poupar da ausência que me cortava a alma. Lembrei-me da devoção que sua melhor amiga lhe tinha e vice-versa. Inseparáveis, elas confiavam e confidenciavam seus segredos. Uma coisa tão bonita e tão rara de se ver. Amizade verdadeira é coisa tão peculiar, que se houver não pode ser arranhada por motivo algum. As duas eram infinitamente diferentes, verdadeiras e amigas. Poucas vezes vi coisa assim. Mas, a pandemia levou uma e o câncer afastou a outra. Não sou de muitas visitas, contudo aprecio a beleza da amizade. Aquelas duas tomavam café juntas, cuidavam dos jardins uma da outra. Uma tinha as chaves da casa da outra... Chamo isso de confiança e zelo. Todavia, o meu momento ali era de elaboração de um passado. Um passado vivo em mim. Minha saudade via as duas, notava seus movimentos e ouvia suas conversas e risadas. O tilintar das xícaras ainda traziam o cheiro do café...

Jeanne Marie Gagnebin, em sua obra “Lembrar escrever esquecer” (2006, p. 97), questiona: “O que significa elaborar o passado?” Ora, a memória tem identidade, e cada qual remonta a sua a seu modo. Não se trata de querer trazer o passado, isso é relativo, pois, quando se trata de alguém querido, nós gostaríamos mesmo de tê-lo de volta, mas em situações calamitosas, de violência, de guerras, de sofrimentos profundos, queremos é esquecer. Em ambos os casos, a memória impede o esquecimento, exemplifica com a alegria e as conquistas, para que estes nos sejam eixos norteadores, e no caso de catástrofes, essa mesma memória, impõe consciência, para que o erro não se repita. Para Gagnebin (2006, p. 99): “É próprio da experiência traumática essa impossibilidade do esquecimento, essa insistência na repetição”.

O passado tem seu valor e seu preço. Ele não deve ser tão barato que permita esquecer os erros, nem tão caro, que impeça de reviver as alegrias. O valor de um passado está no quanto podemos aprender com ele, e no quanto isso deve ser útil para o futuro.

Ali, naquela casa vazia de pessoas, e cheia de afeto, no cuidado para não trincar os cristais, fiquei a pensar na amizade, no quanto ela se parece com os cristais. Ambos preciosos e delicados; ambos transparentes e desejados. Se trincados, jamais retornam ao seu estado original. Se quebrados, ferem com cortes profundos e irreparáveis. No entanto, muitas vezes, empoeiram-se a ponto de serem despercebidos. Essa falta de uso adequado embaça a percepção de seu absoluto valor. Mas quando vamos polindo aqueles cristais, para guardá-los, sua beleza é tanta, que a nada se compara. Com a amizade é igual. Fica translúcido.

Ali, revolvendo aqueles cristais, parece que eu ainda podia ouvir o canto do belguinha, o latido do cachorro, a risada daquelas duas, o acionar dos alarmes de suas casas. Aquelas lembranças pulsavam como um coração que bate. Nossas conversas eram curtas, porque o tempo de quem precisa comprar o pão e de quem distribui o pão é diferente em suas medidas, mas, isso, em nada diminuiu meu respeito e admiração por aquelas duas amigas, tão diferentes e tão iguais. Uma, lá do alto, cuida da outra; a que é cuidada, se mantém em minhas orações, para que seja feliz. De um modo ou outro, as duas são cristais puros. Quartzos. E seu brilho está sempre presente, quando a saudade bate à porta.



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