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20/05/2021 às 08h00min - Atualizada em 20/05/2021 às 08h00min

Concha

IVONE ASSIS
Manoel de Barros escreveu: “Os caramujos-flores são um ramo de caramujos que só saem de noite para passear / De preferência procuram paredes sujas onde se pregam e se pastam / Não sabemos ao certo, aliás, se pastam eles / essas paredes ou se são por elas pastados / Provavelmente se compensem / Paredes e caramujos se entendem por devaneios / Difícil imaginar uma devoração mútua / Antes diria que usam de uma transubstanciação: / paredes emprestam seu musgo aos caramujos-flores / e os caramujos-flores às paredes sua gosma / Assim desabrocham como os bestegos”. Um poema lindo, forte, cheio de significações e aberto a tantas outras interpretações.

Assim como a gosma deixada pelo caramujo, em paredes e superfícies por onde passa, também podemos entendê-la como as marcas que vão sendo abandonadas, diariamente. Desde que iniciou a pandemia, em 2020, por todos os lugares encontram-se os rastros dos caramujos, representados pelos sonhos interrompidos, pelo choro incessante, de uma humanidade que já não sabe o que fazer. A gosma vai marcando o caminho por onde, um dia, passaram pessoas incríveis, que agora se tornaram borboletas e voaram ao infinito. Marca as trilhas por onde muitas crianças buscaram saídas, as quais foram obrigadas a se esconder dentro da concha, mas de lá foram arrancadas, pelas garras de seus algozes, que desejavam morar em seu abrigo. São gosmas mútuas, de caça e caçador. Que mundo torto é esse, em que o lar se torna prisão?! Onde aqueles que deveriam proteger se tornam os carrascos.

O caracol, abrigo no qual o caramujo se refugia, há muito deixou de ser um lugar seguro. Alguns vermes infectaram os caramujos e agora andam a assombrar os vulneráveis. Nem mesmo a concha é um lugar privado. Crianças, mulheres, idosos e outros desvalidos, buscam esconder dentro de suas conchas, em prol de um pouco de paz, contudo, do lado de fora, o dragão bate a cauda com violência, cospe fogo, ameaça, danifica a concha... e vendo que, mesmo assim, sua vítima não sai, insanamente o dragão lança chamas dentro do caracol, destruindo o último fio de esperança de muitas vítimas.

O poeta Manoel de Barros, em “Os caramujos” (p. 72), escreve: “Há um comportamento de eternidade nos caramujos. / Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia inteiro até chegar amanhã. / O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos. / Eles carregam com paciência o início do mundo. / No geral os caramujos têm uma voz desconformada por dentro. / Talvez porque tenham a boca trôpega. / Suas verdades podem não ser. / Desde quando a infância nos praticava na beira do rio [...] achei que esta história só caberia no impossível. / Mas não; ela cabe aqui também”. O poeta apresenta em seus versos, a paciência e a persistência do caramujo para atravessar o tempo, a fim de alcançar o amanhã. Nos momentos mais árduos, o bichinho retoma o início do mundo, em seu anoitecer. E mesmo que suas verdades sejam postas à prova, todos os dias, o caramujo retoma o ápice e, emudecido, sobe barrancos, e árvores, em busca do existir.

Quem poderia saber a dor do poeta? Ninguém. Nem mesmo sabe-se de seu alvorecer, no entanto, a voz do poeta foi lançada, tal como o canto do galo, de João Cabral de Melo Neto, para que os “meninos-caramujos” saibam que é possível sobreviver ao tempo. E a voz de cada um ficará a ecoar eternamente no som que vem da concha.

Metaforicamente, o poeta humaniza a coisa e coisifica o homem, em uma leitura singular dos eus, sob o sol da palavra, que alumia o escuro do coração. No negrume da noite, quando os caramujos saem a passear, muitos predadores se camuflam nas paredes, para dar o bote, e habitar a casa do caramujo, não se trata de “uma devoração mútua”, mas, sim, egos esfomeados, provocando histórias insanas, e estercando outros egos, que seguirão emudecendo milhares de vozes, que vão sumindo no infinito, aprisionadas na concha.



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