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18/03/2021 às 11h04min - Atualizada em 18/03/2021 às 11h04min

A venda da fazenda - parte 2: Lembranças

ANA MARIA COELHO CARVALHO
Com a decisão tomada de vender a fazenda Olhos Dágua, seguiram-se os trâmites normais: avaliação, contato com corretores, divulgação, documentos,  impostos , etc.  A essa altura, o Zé já tinha falecido e na partilha, a fazenda tinha ficado para mim, pois nenhum dos seis filhos teria condições de cuidar (e nem eu). Essa parte técnica foi trabalhosa, mas não tão difícil quanto a parte sentimental.

Ficou aquele sentimento de nostalgia pelos bons momentos que toda a família passou durante os dez anos que sempre íamos na fazenda, e que não voltariam mais . As lembranças do Zé: sentadinho na varanda, olhando feliz a chuva que vinha chegando ao longe.  No meio da pastagem, que parecia um jardim, olhando orgulhoso os bois gordos e sadios, sem nenhum carrapato. No curral, batendo um papo sem pressa, com os funcionários. Ou bebendo  leite quente e espumante com conhaque, tirado na hora das tetas da vaca. Na oficina, orientando sobre o conserto dos tratores, que estragavam sem parar.  Na mesa grande da varanda, cercado pelos filhos e netos, saboreando a galinha caipira que tanto gostava. Ou então o miolo de porco em cima do arroz quentinho. Uma vez ele também comeu omelete de aleluia. Deu uma invasão desses insetos na fazenda, eram atraídos pela chama do fogão e entravam na comida como ingrediente. As lembranças dos filhos: o dia em que o Luiz Cláudio decolou da fazenda em seu paramotor e sobrevoou a Cachoeira do Manteiga. Os habitantes olhavam curiosos quando o vento mudou de direção e ele fez um pouso forçado. Ficou na história da cidadezinha. As competições de tiro ao alvo e as caçadas com espingarda de chumbinho. As pescarias com uma parafernália de fazer inveja a qualquer pescador, mas eles não pescavam nada. As lembranças dos netos e netas: os passeios a cavalo, os piqueniques debaixo das gameleiras gigantes; os netos empoleirados no curral olhando o gado, nadando na prainha do rio Paracatu, brincando na casinha de boneca e na piscina de plástico debaixo do pé de jaboticaba.  A Maíra, a netinha de 9 anos que queria um porquinho de estimação. Mas ele fugiu do tambor, onde ela lhe passava a mão  para domesticá-lo, e saiu numa carreira desenfreada pelo pasto afora. Foram muitas lágrimas de desespero, sem saber se ele saberia voltar para o chiqueiro. No dia seguinte, fomos as duas contar os porquinhos. Tinha doze como antes, ele estava lá sim, com os irmãozinhos, todos iguais! A Vitória,  filha do encarregado, amiga inseparável das netas. O Moisés, que caia em prantos quando ia embora, queria morar na fazenda...O Pedro, que um dia caiu do cavalo, ficou muito assustado e passou um bom tempo sem montar novamente. A Lia, que lá nos States fez um curso sobre como cuidar de cavalos. Fez trança em cascata na crina do Algodão e ele ficou todo garboso. As lembranças do Cookie, o cachorro perdigueiro de estimação que estraçalhou todas as galinhas dángola da fazenda. Da Dama, a cachorra da cidade que sempre ia com o meu filho, dentro da sua gaiolinha. Certa vez ela desapareceu e passamos  parte da noite no pasto gritando por ela. Apareceu no outro dia, esfomeada. E muitas outras lembranças: o céu tão estrelado, o pôr do sol tão lindo, as flamboyans floridas, o queijo fresco e o leite gordo, os pés de mangas suculentas, os pirilampos que certa vez apareceram na casa à noite, ficando centenas de luzinhas acesas por todo canto (mas também aparecia escorpião, minha filha foi ferroada).  A ternura e o cuidado das vacas cuidando dos bezerrinhos novos e o encanto de cada nascimento.  A boiada vigorosa trotando na frente da casa e levantando poeira. A majestade e a placidez do rio São Francisco, o velho Chico. As aventuras a cada travessia na balsa...

Pensando em tudo isso, lembrei-me daquela história de um amigo do poeta Olavo Bilac. Ele queria vender um sítio que lhe dava muito trabalho e despesas.  Pediu então ao poeta para redigir o anúncio da venda. Bilac escreveu: "vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeirão. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes na varanda". Meses depois, o poeta encontrou-se com o amigo e perguntou-lhe se ele tinha vendido o sítio. O amigo respondeu que nem tinha pensado mais nisso, depois que viu a maravilha que ele tinha.

Deu vontade de desistir da venda da fazenda também. Mas sem o Zé, não teria mais sentido continuar. Melhor pensar como naquela poesia: "que esta minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço...porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade."


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