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16/03/2021 às 10h28min - Atualizada em 16/03/2021 às 10h28min

Fim de baile

ANTÔNIO PEREIRA
Últimos dias de 1962. O Bar OK, na avenida Floriano Peixoto, entre as ruas Tenente Virmondes e Machado de Assis, abria suas portas cedo. Atrás do balcão, Tarcísio, o proprietário, um gordo tranquilo, calado, mas atencioso, incapaz de maltratar alguém. A impressão que passava era a do tresnoitado. E era isso mesmo. O bar funcionava o dia inteiro, tinha um restaurante bom, embora simples, e só fechava tardão. Nos sábados, o Tarcísio cedia o cômodo do restaurante para o Zé Vicente, um bom violonista, que animava, com seu grupo, um bailarico que avançava pela madrugada. Na esquina da avenida com a Machado de Assis ficava a casa de pesca Araguaia.
 
Quando chegava a noitinha, a provinciana Uberlândia bocejava para o sossego noturno. A pressa das ruas desaparecia, o calor virava uma frescura estimulante pondo mocinhas vaporosas nas praças e ruas. De repente, a mocidade começava a se recolher, as janelas se fechavam (naquele tempo ainda havia janelas abertas para a rua), as lâminas de luz caiam das venezianas para as calçadas, os cinemas terminavam sua última sessão, as escolas encerravam as aulas, os lojistas desciam as portas de enrolar e escondiam as vitrines.
 
Quando os passos dos retardatários começavam a soar pelas ruas desertas, chegava o Juca e a sua cachorrada. Era o guarda noturno da Casa Araguaia. Vinha de botinas ringideiras, paletó e uma capa no ombro, fizesse frio ou calor. Passos lentos, balançados, a cachorrada molenga que nem ele. O caixote onde ele iria passar a noite sentado já está do lado de fora da loja. Antes, entretanto, ele dava uma rodada em torno, experimentava janelas e portas de enrolar a ver se tudo estava fechado. Daí, sentava-se, a cachorrada fazia um semicírculo à sua frente. Todos os que passavam despertavam a atenção desconfiada do Juca que seguia o estranho com olhos agudos.
 
Daí a pouco, dormia, e os cachorros também. Juca vigiava tudo por ali, mas, além da Casa Araguaia, poucos lhe davam um cafezinho no fim do mês. Quando ele começava a cochilar, o Tarcísio, detrás do balcão, bocejava pedindo ao último freguês que se aviasse, mas pagasse antes. Nos sábados, o Bar OK quase não deixava o Juca dormir. Zé Vicente e seus músicos alegravam os bailarinos, melhoravam o caixa do Tarcísio (que explorava a parte do bar na festa), mas o Juca, cadê de cochilar? Os bailes do Zé tinham uma frequência simples.
 
Naquele sábado, tudo aconteceu conforme os costumes. Muito samba, Tarcísio faturando, Juca mal cochilando e a avenida em pleno sossego. Alta madrugada, o baile acabou e nada seria estranho se não tivesse ficado uma diferença entre duas mulatinhas bonitas que resolveram desfazer a rixa na rua. E começou a gritaria. Uma avançou para a outra, agarrando-se pelos cabelos, empurrando-se, arranhando-se, até caírem no chão. Rodearam. Ninguém interessado em apartá-las.
 
- Deixa ela apanhar! É o que ela quer!
 
Foi a ordem gritada que todos acataram. Mas a avenida despertou. A cachorrada do Juca desandou a latir, chegava perto, voltava, encostava nas pernas do Juca, janelas se abriram, os rapazes da república da dona Josina (na esquina em diagonal com a Casa Araguaia) saíram de cuecas na sacada. Bom lembrar que entre os pensionistas estavam o segundo tenente Plínio Abreu Coelho, hoje general, e o vestibulando Victor Hugo Machado da Silveira, um dos bons criminalistas da cidade – não sei se eles presenciaram o fato narrado. E tome pancada, e gritos da torcida, a rapaziada abusando lá de cima, Tarcísio e Zé Vicente longe daquilo. Juca, que tinha conseguido um soninho ao fim do baile, ainda esfregava os olhos quando um dos cachorros pulou sobre ele como querendo acordá-lo. Num salto, ele arregalou os olhinhos sempre atentos quando acordados e correu para a Pensão Lisboa, ali perto, para chamar a Polícia. Quando a Rapa dobrou a esquina, houve um corre-corre, as mulatinhas se destrançaram, os torcedores foram saindo, Juca olhava pra lá e pra cá, a cachorrada inquieta, latindo, saltando sobre ele, os rapazes da república se recolheram.
 
No meio do salve-se quem puder, um tranquilo casal, na sombra da esquina da travessa, traçava um longo beijo... quem sabe, começado junto com a encrenca...


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