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30/01/2021 às 08h15min - Atualizada em 30/01/2021 às 08h15min

Decidam por nós

ALEXANDRE HENRY
Há poucos dias, o Senado dos Estados Unidos enfrentou uma questão polêmica: pode um ex-presidente ser processado, com vistas a um impeachment, ou isso somente pode acontecer enquanto ele estiver no cargo? O caso, como você já sabe, é o de Donald Trump. Contando com 100 membros, os senadores decidiram, por uma pequena maioria, que a saída do cargo não impede que o processo de impeachment tome curso, vez que ainda há outras penas que podem ser aplicadas além daquela relativa à remoção do cargo.

No Brasil, já tivemos os impeachments de Collor e Dilma. Ao contrário do que acontece agora nos EUA, porém, vários pontos relativos aos julgamentos brasileiros acabaram sendo decididos não pelos congressistas, mas pelo Poder Judiciário. No caso de Collor, decidiu-se na Justiça um monte de questões sobre o procedimento, assim como ocorreu com o processo de Dilma. Isso não é algo incomum: rotineiramente, problemas que deveriam ser decididos pelos outros poderes são levados por seus próprios membros ao Judiciário. Vereadores fazem isso, deputados estaduais, federais, senadores e por aí vai: é comum não aceitar determinado encaminhamento na própria casa e recorrer à opinião externa, no caso a de juízes, para que estes decidam tudo.

A grande questão é que, com isso, abre-se mão de muita coisa, incluindo duas muito importantes, que são a renúncia aos próprios poderes e também a capacidade de aceitar uma derrota dentro de casa. Quando um deputado vai ao STF para barrar certa ação ou decisão da Câmara, o que ele faz é transferir parte do poder que ele e seus colegas têm, ao mesmo tempo em que deixa claro – equivocadamente - que o processo democrático só se completa com uma decisão externa.

Evidentemente, o problema não está só nos membros dos outros poderes. Os juízes, e aqui eu falo geral, incluindo desembargadores e ministros, vão se acostumando ao longo do tempo a decidir questões que poderiam ser decididas pelos próprios legisladores ou membros do Poder Executivo. Quer algo mais inebriante do que a sensação de poder? Se eu posso dar uma canetada e decidir sozinho algo que estava a cargo de mais de quinhentos deputados, os quais representam indiretamente a vontade de um país inteiro, como não me sentir empoderado? Como não gostar disso? Assim, pouco a pouco, quem se senta na cadeira de juiz vai tomando gosto por atuar não apenas nas funções típicas de magistrado, mas também tomando decisões que são típicas de um prefeito, de um governador, de legisladores, etc. A capacidade de autocontenção, uma das mais importantes para legitimar o próprio poder dos juízes, vai se perdendo ao longo de cada processo em que se decide o que não deveria ser decidido por juízes.

Esse é um problema muito sério, pois torna o Poder Judiciário cada vez mais politizado e pode minar sua credibilidade perante a população. Dizer, eventualmente, que aquela é uma questão que deve ser decidida fora do Judiciário não é renunciar aos próprios poderes, mas dar mais legitimidade a eles quando eles realmente forem exercidos dentro das atribuições dadas pelo sistema. Essa é uma ideia que trago comigo no exercício cotidiano do meu trabalho.

Confesso, porém, que não é algo fácil para um juiz, ao menos no Brasil, dizer que a questão deve ser decidida em outra esfera de poder. Primeiro, porque são tantos os processos em que se busca um resultado que deveria ser tentado por outros meios que fica difícil para o juiz ter uma noção clara do que é atribuição dele e o que não é. Segundo, porque nossa Constituição é tão prolixa que tudo parece ser, no final das contas, uma questão de interpretação de normas jurídicas, trabalho, geralmente, ligado ao Poder Judiciário. Eu mesmo já errei muito nessa área, confesso.

Mas, é preciso que repensemos o sistema. É necessário que cada um reflita sobriamente antes de provocar o Poder Judiciário em relação a uma política pública ou qualquer outro assunto que possa ser decidido fora dos gabinetes de juízes e de ministros. Aceitar a decisão tomada dentro de casa é quase sempre melhor do que pedir a um estranho que dê o ponto final para a questão. Também é necessário que os juízes voltem a fazer uma reflexão mais profunda sobre os limites de suas atribuições, exercendo com mais frequência a autocontenção. Só assim conseguiremos manter esse sistema de distribuição dos poderes que tem sido o pilar do sistema democrático. No final das contas, abalar o equilíbrio entre os poderes é um dos maiores riscos para qualquer democracia.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 
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