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19/01/2021 às 08h00min - Atualizada em 19/01/2021 às 08h00min

Crítica pra que?

CHICO DE ASSIS
Bob Cuspe e Meia Oito. Publicação no livro Sexo, Drogas e Rock'roll, de 1984.

No início dos anos de 1980, depois de Rê Bordosa, talvez Bob Cuspe tenha sido o personagem mais popular do cartunista Angeli. Foram várias revistas especiais que davam destaque a ele. Bob Cuspe foi criado para satirizar o movimento punk, mas seu autor acaba se identificando com a cena durante o processo de criação. Nas palavras do cartunista: “Não existia punk nessa época. [Antes da década de 1980, no Brasil] Depois, li um livro do [escritor Antônio] Bivar... Antes, eu tava muito reticente com o punk. Achava que era modinha importada, não tava entendendo direito. Quando li o livrinho, vi que era minha turma.”

Bob Cuspe nasce como um porta voz de Angeli, aparentemente isentão, o personagem era mau humorado e cuspia para se expressar. O ato de cuspir é muito simbólico. Suas falas são bem reduzidas e a cusparada parece ganhar um novo significado a cada tira. Subversivo e de poucas palavras, o personagem agradava seus leitores, no entanto, assustava a direita conservadora, pois representava a escória da sociedade, os maus hábitos e o mau gosto. Certa vez, chegou a cuspir no Sarney. Por outro lado, a esquerda ortodoxa se incomodava com sua postura descompromissada em relação as principais pautas daquele momento.

A abordagem de Angeli era do cotidiano, mas nem por isso, menos política. Ele provoca seu leitor, dando ênfase ao comportamento de uma juventude brasileira que vivia o processo de abertura política após 20 anos de ditadura militar. Era um período de intensos debates e enfrentamentos. O que estava em jogo era a democracia brasileira e vários projetos. Haviam expectativas em torno do fim da ditadura, da instituição de eleições diretas, da recuperação da liberdade de expressão, da liberação dos costumes (liberdade sexual, divórcio, aborto, homossexualidade), esperava-se que a sociedade civil fosse protagonista da redemocratização. Para o cartunista, era impossível fazer “humor a favor”, a crítica era inerente a comicidade.

Passaram-se mais de 30 anos e o cuspe do personagem cala fundo em uma sociedade que se mantém polarizada e ainda buscando construir e solidificar sua democracia. Sobreviver a crítica parece hoje uma missão impossível, porém quem deseja mudança deve enfrentá-la. Do contrário, encararemos atônitos a força hegemônica de um Brasil conservador.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 

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