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24/10/2020 às 08h00min - Atualizada em 24/10/2020 às 08h00min

Eu chorei, tu choraste, ELES CHORARAM!

IARA BERNARDES

Dia 17/03/2020, era aniversário da tia preferida, todos se arrumaram cedo, as crianças com seus uniformes, as meninas com seus cabelos presos, uma oração dentro do carro, uma conversa sobre o dia que estava começando. Não me lembro exatamente como foi aquela manhã, mas recordo de ler no grupo da turma do segundo ano que algumas mães não iriam mandar seus filhos para a escola e confesso que achei um pouco exagerado.

Uma blusa verde, a saia florida, fui ao dermatologista, conversei descontraidamente com as secretárias, busquei as crianças na escola e a partir daí um enorme vazio na minha mente, apenas seguimos vivendo aquele dia que eles ligariam para a tia favorita, cantariam parabéns, dormiriam e a vida continuava no dia seguinte. Mas como um relâmpago em nossas cabeças, tudo mudou, não lembro ao certo o horário do decreto, mas à noite eu já sabia que no outro dia estaríamos de “férias”. Eles comemoraram que não precisavam mais acordar cedo por um tempo, que estariam em casa conosco e que poderiam fazer muitas coisas divertidas e de fato essa alegria durou bastante tempo. No entanto, a mudança começou a ser drástica demais, pesada demais, doída demais!

Com a pandemia veio a crise financeira, mudança de escola, não tem mais aulas online. Mais uma vez a comemoração foi parte da rotina por não terem o compromisso de estar todos os dias bem cedo em frente ao tablet, mas isso também passou e a saudade apertou. Não tinham mais identidade escolar, não tinham mais os colegas da escola antiga, tampouco os da escola nova, não conhecem suas professoras nem sabem a cor das paredes de sua sala, do pátio, nem o tom das brincadeiras com aqueles que seriam seus novos amigos e também se cansaram de não ter e com isso o choro chegou.

Primeiro uma pequena menina pálida, no alto de seus bem vividos 6 anos de idade, deitou na rede, balançou, parou, pensou e se deixou ali, perdida em meio às lágrimas de saudade dos amigos, da professora magnífica – que saudades da “Tia Ju” – do porteiro da escola, das picuinhas infantis parte da rotina escolar. Chorou também de medo, frustração, raiva e cansaço do incerto que, inicialmente, parecia certo e divertido.

Depois um pequeno homenzinho, com seus 4 anos de vida, surpreendentemente começou a expressar a saudade da escola. Uma saudade que antes era resumida, diariamente, às lembranças do melhor amigo, passou a tomar maiores proporções, agora ele falava da amiga princesa com nome de rainha, do escorregador, das professoras e do tatame da sala de aula onde costumava passar cerca de nove horas diárias. Brincar com as irmãs, jogar videogame com o pai, passar as manhãs acompanhando os desenhos já não tinha o gosto do início das “férias”. Tudo isso estava ficando pesado demais e ele também chorou. Um choro disfarçado de briga fraternal, um esgotamento nervoso fingido de cansaço.

E ela, que se expressa com precisão, pede pelas chamadas de vídeos, tinha momentos longos vendo as amigas pelo celular, brinca horas e horas inventando hospitais e pacientes, também chorou. Um choro de ódio, lágrimas que saíram silenciosamente e um cansaço que ela não tinha palavras para expressar. Na tentativa de nomear o sentimento eu perguntei se o que sentia era como uma bola no estômago, um nó na garganta e ela respondeu que sim e rezou para que passasse enquanto repetia: “mamãe, me ajuda! Sentir isso é ruim demais!”. “Filha, o nome disso é raiva, tem que aprender a respirar. Vamos lá, puxa o ar e solta devagarinho.”, repliquei com cuidado, tentando disfarçar toda a minha frustração. Até que saiu um desabafo abafado, quase vomitado, tentando ser contido. “Mamãe, eu estou com saudade da Isa! Estou com raiva desse corona vírus que tirou meus amigos de mim.”. E dormiu, chorando seu choro silencioso.

Meus filhos estão sofrendo, vivendo uma morte que não é provocada pelo vírus, mas pelo distanciamento que nos foi imposto. Então você me diz: “está difícil para todo mundo.”. Mas aí é que está, eu não sou responsável por “todo mundo”, eu não preciso sentir a dor desses que não são meus e não sou mãe de todo mundo. Minha maternidade é para esses três que aqui estão a chorar, a viver o luto de não mais ter o que eles nem sabiam que apreciavam tanto.

Eu já chorei, tu choraste, nós choramos, mas ver ELES CHORAREM é que me dói a alma e massacra meus sentimentos. Minha maternidade hoje se resume a crises de ansiedade diárias, a muitos remédios de uso controlado, gotinhas homeopáticas, óleos essenciais, oração, cansaço e uma tentativa quase frustrada de ajudar meus filhos a enfrentarem esse “novo normal” que de normal e saudável não tem nada.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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