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23/10/2020 às 08h00min - Atualizada em 23/10/2020 às 08h00min

Acumulador

WILLIAM H STUTZ
Sem querer me deparei com matéria sobre Ramann Shukla, que “passou 18 anos acumulando mais de 60 mil itens, amontoados em sua casa de três quartos, um apartamento alugado, duas garagens e 24 caixas”. Considerado o maior acumulador do reino unido, morto no começo de 2020, aos 64 anos, Shukla deixou uma 'coleção' milionária, estimada em até 4 milhões de libras, cerca de R$ 29 milhões. A ideia de Ramann no começo da acumulação, em 2002, era guardar os itens e vendê-los um dia para financiar sua aposentadoria (...) O irmão, herdeiro, ficou chocado ao descobrir o hábito e logo procurou uma casa de leilões para dar conta da venda e despacho dos itens (...) - innoticias.uol.com.br/internacional. Acredito que isto tenha lhe rendido boa grana.

Durante meus muitos anos como Servidor Público tive a triste oportunidade, por honra do dever profissional, de conhecer e conviver com tantos outros acumuladores em várias cidades do Brasil. Em sua maioria, considerados uma ameaça à saúde pública. Bem diferentes de seu colega britânico.

A pobreza provavelmente os levou a desenvolverem a compulsão que, a meu ver, jamais deveria ser tratada com truculência. A simples presença entre montanhas de objetos em seus espaços daquilo que a maioria considera lixo, faz parte de um mundo de sonhos só deles. Onde vemos lixo e podridão, eles veem joias e perfumes. Sempre conduzi meus encontros com estes vulneráveis humanos de forma multidisciplinar: cuidar com carinho de suas mentes, entender o que os levou a esse estado de miséria para, depois, de forma lenta e sempre junto com o acumulador, estimular aos poucos o doloroso desapego de objetos que, se para nós é entulho, para eles são de importância vital. Na maioria das vezes obtivemos sucesso. Demora, mesmo sob o protesto compreensível de reclamantes e mais diretamente afetados pela proximidade com estas pessoas, nos levava a atuar em duas frentes. Reclamantes e reclamados, o andar de carruagem levada à boa solução.

Um caso um pouco diferente, mas queira ou não também de Saúde Coletiva, aconteceu entre uma senhorinha e um galo. Conto.
Belo dia, colega de trabalho encarregada de receber as reclamações da população entra aflita em meu laboratório. Em suas mãos uma Ordem de Serviço (OS) no mínimo inusitada. Uma pessoa estava a reclamar de um galo, isto mesmo, um galo, o marido da galinha, que não a deixava dormir de jeito nenhum, pois de hora em hora abria o peito a cantar para as estrelas madrugada adentro.
A colega já tinha tentado convencer a pessoa que não era ali que tinha de reclamar. Recomendou-lhe a Secretaria de Serviços Urbanos, através se sua Divisão de Posturas (nem sei se existe mais), o pessoal do Meio Ambiente com suas leis do silêncio e até a polícia ou Corpo de Bombeiros.

Irredutível como os Gauleses da Asterix, que mesmo cercada pelas guarnições de legionários romanos acantonados nos campos fortificados de Babácomrum, Aquarium, Laudanum e Factotum, e que faz da vida dos invasores um inferno. Diante da sugestão ela retrucou: Não!É aí que cuidam de bichos! Então quero vocês. Não éramos cartoriais como alguns funcionários públicos, maioria destes por preguiça e/ou falta de compromisso mesmo. Resolvi ir pessoalmente atender a OS.

Ao chegar lá fomos recebidos por uma senhorinha de seus 90 e tantos anos de vida. Jeitinho de vó, de uma educação pouco vista em casa de quem reclamava de alguma coisa para nós. Ofereceu café, biscoitinhos de araruta deliciosamente amanteigados e foi rodeando até chegar ao galo. Meu filho, disse com voz mansa, meu sono é leve que só. Além do barulho de motocas e automóveis com suas buzinas (palavras dela) que me enlouquecem, espero madrugada para cochilar um pouco e aí esse danado de galo índio começa a sinfonia. Da janela nos mostra o quintal do vizinho. Olha lá o excomungado ciscando! E eu pensando que poderia ser um garnisé riliento.

Muita prosa, lembranças de sua infância na roça, de namoricos na varanda e encontros para almoço sob mangueiras. Saímos de lá com a sensação de que o canto do galo embalaria seu sono e sonhos. Por incrível que possa parecer, meses depois nos ligou para agradecer e para um café com biscoito. Parecia outra pessoa. Jovial, rejuvenescida, nos contou que até tinha voltado a tocar seu piano e que nem as “motocas e automóveis” a incomodavam mais. E ainda, de reclamar passou a defender o galo cantor. Tudo que as pessoas querem é carinho e atenção. Um segredo para os que ficaram no trabalho e, pelo que sei, não entenderam isso. Paciência e amor ao que se faz. Simples assim.

Conto esta história porque eu, particularmente, sempre fui um acumulador de coisas não materiais, as quais dou pouco ou nenhum valor. Fui e sou um acumulador de sonhos. Minhas gavetas mentais estão transbordando deles.

Muitos me foram tirados à bruta, geralmente por um simples incisivo NÃO... Outros foram ficando erados, pardos, até sumirem. Alguns ficando escondidos cada vez mais em fundos das gavetas da alma, esquecidos em pó e tristeza, mas sempre prontos a voltar à luz da esperança ao mais ligeiro estímulo.

Diferente de Ramann Shukla, o acumulador lá do Reino Unido, fiz um desapego total das partes ruins de meus sonhos, desejos e destino. A morte não me levou antes de realizar meu maior dos desejos. Uma bela e maravilhosa aposentadoria emocional ao lado de quem eu quero e me quer. 

Encantei-me outra vez e, depois de duro aprendizado, bati no balcão da vida com delicadeza e o simples pedi: “Me dá um amor? Com açúcar ou adoçante? Ao que respondi em sorriso: Puro.” ( as aspas não me dão os créditos pelo tão belo dizer, mas infelizmente desconheço a autoria, mas deve ser alguém muito especial)

Meus sonhos não vão a leilão, quero usufruir cada segundo deles, pelo tempo que me resta. E sim, adoro ouvir a conversa de galos e cães madrugada alta. Um canta mais perto, outro de longe responde, e outro, e outro...


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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